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Carlos Calvo: «Do que se trata é de começar a viver aqui e agora, uma vida que mereça a pena ser vivida, plena e digna»

Diários, de Carlos Calvo Varela, é a mais recente novidade da Através Editora. Filósofo, antropólogo, ativista social e jornalista, colaborador de vários meios de comunicação como Praza Pública, Sermos Galiza, revista Luzes ou o jornal Mapa. Membro do Conselho de Redação do Novas da Galiza, numerosos portais web e publicações diversas têm recolhido os seus artigos nos últimos anos. A 15 de setembro de 2012 foi detido em Vigo acusado de «terrorismo» e desde então está preso, tendo passado por sete cárceres diferentes, todas situadas fora da Galiza. Porém, nunca deixou de enviar cartas cheias de vida, cores e letras. A Audiência Nacional espanhola pretende que passe 14 anos privado de liberdade. Na presente entrevista conta-nos os pormenores destes Diários.

Como se articula um livro no cárcere, sem ter acesso ao computador nem à Internet?

Um dos desenhos de 'Diários'
Um dos desenhos de ‘Diários’

Aqui em Villabona há uma moça basca, a Marina, que está a redigir a sua tese de doutoramento. Parece-me que tem muito mérito. Eu não seria capaz. Apenas dou escrito cousas minhas mui fragmentarias e, de facto, os Diários são isso, apontamentos de leituras, anotações na agenda e cadernos, ideias a lápis nas margens dos livros… A escrita analógica, linear por força, não dá a mesma facilidade para as correções, reescritas e ampliações que dá o computador. Também é mais difícil fazer-se com um corpus bibliográfico: cousas que fora estão ao alcance de um clique, cá dentro leva meses poder consegui-las; há, aliás, que ir escrevendo fichas bibliográficas de todos os livros que podes ter a necessidade de citar mais adiante, mas isto também tem um limite, porque não nos permitem acumular muito papel, sobretudo nos isolamentos.

Polo contrário, no encerramento pode-se fazer um tipo de leitura mais profunda, de ritmo lento, do que aí fora no meio da voragem tecnológica. Contudo, esta leitura intensiva, unida à falta de debate, próprios da razão polémica, e à limitação das fontes, acaba por gerar deformações teóricas, como tem refletido Antom Santos num artigo na revista Murguia. Insisto, porém, no isolamento tecnológico: escritores como Richard Ford reconhecem que é impossível escrever mais de duas linhas se houver uma rede wi-fi, e ele próprio costuma recluir-se na sua cabana do bosque para poder trabalhar. Tão-pouco há que idealizar esta imagem do trabalho solitário. Todo o trabalho humano é, por definição, coletivo e no cárcere é fundamental todas as leituras e o amor que nos enviam. Deste livro, sem irmos além, deveria figurar como autora a Rosabel, o Valentim, o corretor Ivan, o diagramador Matias, os companheiros polas suas conversas nos parlatórios…

De onde surge a força para se sentar diante do papel?

Não creio que tenha nada de “heroico” escrever no cárcere; sinto-me mui incómodo com toda essa épica académico-literária a que tanto tende a cultura galega. Quem quiger épica que olhe ao seu redor, a senhora que cuida os velhos da família sem nenhum reconhecimento, o vendedor de Cds que atravessou o deserto e o estreito por enviar algo de pão à sua casa ou às mulheres que vão à prisão carregadas de valentia e amor. Escrever é um privilegio.

Levas mais de três anos privado de liberdade polo estado espanhol, e, contudo, continuas a participar com os teus textos, com este livro, ativamente, no movimento social. Que pensas sobre a função do ativismo como forma de mudança da nossa sociedade?

Um dos desenhos de 'Diários'
Um dos desenhos de ‘Diários’

Não gosto muito da palavra “ativismo” polo que poda sugerir de diferença (e distinção) com a vida quotidiana, razão pela qual ir à manifestação seria algo “político” mas criar filhos com amor não. Afinal do que se trata é de começar a viver aqui e agora, uma vida que mereça a pena ser vivida, plena e digna, e para isso necessitamos tocar interdependências entre nós – se se quiger podemos chamar a fazer isto conscientemente ativismo – que nos independizem efetivamente do estado, o capital e de todas as relações de dominação. Ninguém o pode fazer por nós, nem sequer os nossos partidos e líderes. A bruxa Avería, que também devia ser algo spinoziana, dizia-o muito bem: «sozinho não podes, com amigos sim». O individuo do liberalismo será livre por escolher entre a Pepsi e a Coca Cola, mas a liberdade real precisa de comunidade de afetos e cuidados, de cooperativas de alimentos e energia, de redes culturais auto-geridas, de línguas sustentáveis e resilientes, de meios de comunicação comunitários…. e fai falta comunidade, sobretudo, para resistir, para defender a alegria.

Um dos teus referentes é Joseba Sarrionandia. No teu livro também falas de Nelson Mandela. De que modo o teu pensamento, motivações e ativismo vê-se influenciado pola tua condição de preso político?

Um momento do lançamento de 'Diários'
Um momento do lançamento de ‘Diários’

O Sarrionandia sempre foi um referente iniludível de bailes das noites às quintas [risos]. Em geral os presos lemos muita literatura carcerária, não só Mandela, e creio que é porque a experiência do encerramento é um pouco incomunicável, difícil de compartilhar – também a de quem tem alguém querido preso – e nesses livros encontramos sensações comuns. Soará estranho mas quando lim a entrevista ao sair da prisão de alguém que me fica tão nas antípodas como Luis Bárcenas, declarando que na prisão viu muitas malheiras a presos, sempre aos mais indefesos e com total impunidade, sentim que mesmo com esse tipo eu compartia alguma cousa, uma «verdade».

Fascina-me como a gente dos movimentos emancipatórios encontrou no cárcere a skholè, esse tempo libertado da urgência que permite desenvolver o pensamento, que não tinha na sobrevivência do seu dia a dia; conseguindo assim construir filosofias próprias, tarefa que parecia reservada aos notáveis.

Isto gerou uma retranca mui boa: as irlandesas chamavam Universidade da Liberdade à prisão britânica de Long Kesh (Seanna Walsh diz que foi mui importante para a conservação do gaélico). Os curdos não são presos no cárcere turco mas na Universidade Curda, e Ghandi, que devia ter uma ironia prodigiosa, escrevia cartas à gente do seu ashram “a partir do Templo de Yerawada”, prédio que continua a ser uma cadeia infeta hoje em dia. Por que o cárcere é um tema tabu na literatura galega apesar de que, desde 1974, passasse por ela um cento de soberanistas, alguns excelentes escritores? Creio que a resposta poderia dizer muito da nossa cultura política.

Nos últimos anos o processo de desgaleguização acelerou, mas apareceram novas formas de resistência e criatividade social. Quais são, a teu ver, as nossas fortalezas e oportunidades na situação atual?

Um momento no lançamento de 'Diários'
Um momento no lançamento de ‘Diários’

Vejo com esperança o surgimento de uma constelação de projetos, baseados na autonomia, auto-gestão e democracia direta, pensados para durar, superando o curto prazo de memória de peixe que impõem os ciclos eleitorais. Também tenho a impressão de que um dos movimentos mais fortes é o feminismo, e isso vai ser uma garantia de que todos tenhamos que assumir que a transformação social passa incontornavelmente pola transformação pessoal e a mudança de atitudes e comportamentos nas nossas vidas quotidianas.

Quanto à desgaleguização não sei o que pensar, às vezes entra-me uma vertigem ao pensar que com os velhos e velhas está a morrer um mundo que eu tivem a imensa fortuna de viver de neno e, outras vezes, vejo fotografias das mobilizações labregas em Ordes, com crianças em tratores de pedais e convenço-me de que a indigeneidade tem melhor saúde do que pensava. Disque aí fora ainda ficam crianças que vão às amoras, fam cabanas entre os loureiros e no dia da festa apanham nos prados os canaveiros das bombas.

Politicamente estamos a pagar mui caro a monocultura eleitoral-literária dos últimos anos e o desleixo face à construção nacional e a reprodução social. Apenas levamos uma década a fazer, e isso só uma minoria marginalizada e perseguida, o que em ouras partes como no País Basco, se começou a fazer na década de 1960: construção de escolas, centros sociais, clubes desportivos e gastronómicos, etc. Aqui, com uma maioria de população indígena e galegofalante, talvez pensássemos, como Benito Vicetto, que a Galiza “sempre será a mesma”, e que “apenas” havia que chegar ao governo; mas, no caminho, com a desruralização, foi-se erodindo drasticamente a base material da nação. Cheguei a pensar que com a implosão do nosso PCI haveria um reforço da construção nacional através destes projetos que vão além da política de partidos, mas sucedeu o contrario: reativação das velhas formas de fazer politica com as suas dinamicas mais perniciosas, cooptação de motores importantes dos movimentos sociais e enfraquecimento dos mesmos, que perderam iniciativa. Assim sendo, o mais interessante, o que pode conservar mais bases materiais para a nossa terra, é muitas vezes de gente que não se identifica como soberanista, que quiça nem fale galego mas que está a criar uma economia pós-consumista. a recuperar aldeias de entre as silveiras ou a dar nova vida aos bairros deprimidos com cooperativas de todo o tipo. Têm toda a minha admiração.

Que tipo de respostas esperas com a publicação de Diários? Quais as tuas expetativas?

Um dos desenhos de 'Diários'
Um dos desenhos de ‘Diários’

Michel Foucault pretendia que os seus textos, como os bilitroques, fossem “eficazes como bombas e belos como um fogo de artifício”. Esperar tanto seria mui pretensioso pola minha parte, mas é uma boa bússola na hora de escrever.

O livro inclui vários dos desenhos que elaboraste em prisão. Que te dá o facto de criar imagens?

Tenho amigos, como o Andoni, que calcetam um pulôver para os filhos, outros que fam quadros impressionantes com ponto-de-cruz ou que trabalham -nos cárceres onde isto é possível – o barro. O trabalho manual é mui prazenteiro no cárcere e mui bom para pensar. Às vezes segues argumentações com as mãos que desenham mais do que com a cabeça. “Caminhei até os meus melhores pensamentos” dixera Kierkegaard. Recuperei, ao pintar nos envelopes das cartas para os amigos, as sensações de quando fazia mentalmente os trabalhos da escola indo à erva com o meu avô.

Que dirias às pessoas que te esperam?

Que se vaiam preparando para uma churrascada selvagem, com sidra de Loureda-Soandres e canções do Erasmo Carlos, que aqui dentro não hei de ficar. Como dixera o Teto, nunca choveu que não escampara. Diria-lhes, diria-vos, que é muita a sorte de vos conhecer, que me enchedes de amor e que sinto um agradecimento imenso a todas e todos vós. Que prazer tão grande vai ser abraçar-vos! Mas diria que, enquanto ficar um só preso, um só cárcere em pé, incluídos os cárceres ao ar livre e as das relações de dominação das quais nós próprios somos carcereiros, não seremos realmente livres. Abaixo os muros das prisões! Pele e Terra!

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