As relações entre o “nacionalismo” e o “nacional” são conflituosas na Galiza e seguramente também sintoma de precariedade. Creio que era Xurxo Borrazás que propunha imprimir uma viragem “queer” à literatura galega: reapropriarmos, para o imaginário nacional, os ingentes recursos simbólicos que ficaram fora do nacionalismo. Também há propostas de estratégias de descolonização à maneira de Homi Bhabha: erodir, a partir do interior, a narrativa do colonizador, explorar as suas contradições. É o que faz Ernesto Vázquez Souza, por exemplo, descobrindo uma Francesada que tem mais de afirmação galega do que de “independência de Espanha”. São caminhos discursivos para transitar do nacionalismo para o nacional, de abandonar o resistencialismo para encetar a hegemonia. Porém, ainda suscitam desconfiança, seguramente por dous motivos: a fraqueza do nacionalismo galego e a lembrança da armadilha teórica do pinheirismo (e as suas reedições atuais).
Em Valle-Inclán lusófilo: documentos (1900-1936), Rosário Mascato Rey propõe-nos um destes experimentos, uma “outra maneira de ler Valle-Inclán”, que não é outra que “a que nos permita recuperá-lo para, da Galiza, torná-lo lusofonamente universal”. Isto é, lermos Valle-Inclán tal e como as irlandesas leem Joyce ou Yeats.
O livro abre-se com uma visita guiada pola biblioteca do escritor arouçano, que espelha bem a intensidade do seu relacionamento com os intelectuais portugueses, que visitiva regularmente. E é que, com certeza, os anos de pré-guerra foram os de maior interação entre lusos e galegos. Valle-Inclán faz parte em 1922 da Junta Diretiva da Sociedade de Amigos de Portugal, e um ano depois será proposto para ocupar a polémica Cátedra de Literatura Galaico-Portuguesa. Pouca gente no estado espanhol conhecia tão bem a literatura lusa como ele, que tinha amizade com escritores como Lopes Vieira, o ‘galego’ Teixeira de Pascoaes e, sobretudo, Guerra Junqueiro (quem é influido por um agrarismo galego que, por sua vez, emprega os seus poemas na agitação componesa).
Do seu relacionamento com o nacionalismo conhecem-se, sobretudo, os desencontros: os ataques de dous “punkies” no manifesto “Máis Alá”, ou as críticas de Risco, para quem “Don Ramón non fixo na sua vida mais qu’enriquecer o castelán a conta do galego”. Contudo, também houvo encontros, até o ponto de que Carvalho Calero fala mesmo duma possível filiação às Irmandades da Fala da Corunha. Em 1910 os irmandinhos entusiasmam-se com o poema “Cantiga de vellas”, a primeira e última composição em galego de Valle-Inclán. Eugénio Carré Aldao incluirá-o imediatamente na sua Literatura Gallega, como parte da “nueva generación literaria que inspirada en modernos ideales viene a luchar pro patria”. Entre 1916 e 1918 acentua-se essa boa sintonía; a A Nosa Terra recolhe rumores duma possível obra valleinclanesca em galego, que daria um impulso de gigante ao processo de recuperação da língua.
Mas qual é o posicionamento de Valle-Inclán perante a Galiza? Para Rosario Mascato, de todo o repertório galeguista – paisagem, atlantismo, tradiçom galego-portuguesa, etc. – Valle-Inclán apenas renuncia à língua. No plano territorial, Valle-Inclán advoga por uma “deconstrução” das modenas nacionalidades ibéricas, propondo reinstaurar as antigas regiões romanas: “en esta nueva organización regional, Santiago ocupará el vértice del triángulo formado por la Lusitania y la Cantábrica, será la capital estética de ambas, con lo cual Galicia volverá a ser grande como lo ha de ser España”. Carol Maser vê aqui “a definición valleinclanesca dunha España ‘rectificada’ onde o centro ríxido da nación se relaxa, as rexións da periferia participan outra vez como membros iguais, e España deixara de se considerar un país imperial”. Não está, na realidade, tão longe da visão dum Porteiro Garea ou dum Castelao, para quem a Espanha retificada é uma também rerromanizada Hespanha. A diferença é que, enquanto o galeguismo dá à Galiza a chave da “retificação” de Hespanha e a ponte com Portugal, Valle-Inclán dilui-a na sua Lusitânia. Isto tem muito a ver com o seu posicionamento quanto a língua: o galego seria apenas um português deturpado pola contaminação castelhana. Por tanto o galego moderno não terá sentido: “Assim como o arménio foi a invenção de alguns frades, o galego foi a criação dum grupo de poetas”, declarará ao Diário de Lisboa.
Adverte Niestzsche, n’ A genealogia da moral, que “Nom há um conjunto de máximas mais importante para um historiador que este: que as verdadeiras cousas da origem dumha cousa e a sua eventual utilizaçom, a maneira da sua incorporaçom a um sistema de propósitos, som mundos à parte; que todo o que existe, nom importa qual seja a sua origem, é reinterpretado periodicamente por aqueles no poder em termos de novas intençons (…)”. Tal e como Bourdieu fala duma lógica social da diferença, caberia falar, a propósito do antedito, duma lógica nacional da diferença: um mesmo símbolo ou posicionamento pode ser de afirmação ou negação nacional, dependendo em relação com que é posto em jogo. O discurso valleinclanesco quanto à língua tem muito em comum com o reintegracionismo de hoje, e porém, o que dizia dizia-o precisamente polas razões contrárias. Ao modo de Valle-Inclán, Valera sugeria a Menéndez Pelayo que “todo gallego que no quiera escribir en castellano, escribirá en portugués, y no nos inventará otra lengua culta y literaria que jamás ha existido sino como dialecto del vulgo”. De facto, a denominação de “galego-português” era habitual entre o “oficialismo” espanhol, até que o processo de institucionalização das Autonomias dá a volta a esse discurso: agora a forma de negação é acentuar a diferença. O mesmo pôde ter sucedido com o catalão do País Valenciano. No caso basco, o espanholismo reconhecia e usava o termo Euskal Herrira ou Euskalerria (incluindo Navarra), e a diferença nacional, a afirmação basca, realizava-se através do “Euzkadi” de Sabino Arana).
O trabalho de Rosario Mascato, e a sua publicação por parte da AGAL, demonstra a boa saúde do reintegracionismo, o sector do nosso galeguismo que, sem complexos, mais está a transitar para o (inter)nacional. Um discurso que é capaz de apropriar-se de supostos “inimigos” e enriquecer-se com todos os recursos disponíveis, abrindo novos caminhos, como o reintegracionismo para ‘oficialistas’ que propõe Eduardo S. Maragoto. Ainda menos mal que na Galiza não tudo é repetir as mesmas estratégias – e as mesmas derrotas!