Relatos de «Um queipo no lar»: Isabel

Partilhar

Por Adela Figueroa Panisse

Conheci Isabel na casa de Pinheiro. (Assim era como eu chamava a aquela vivenda.) Era a sua mulher.

Uma mulher alta, mais bem grande. Amável e tranquila. Tinha um peculiar jeito de falar, sobretodo na pronuncia do lhe, como se a língua lhe quedasse atracada no fundo da boca entre os dentes. Tentava falar galego, mas com fortuna pouca (isso digo-o com ternura, a que a lembrança dela me inspira). Tinha grossas gafas escuras, de montura semelhante às que levava o seu home.

De Isabel lembro, sobretodo, os seus riquíssimos flanes de coco. Também a sua amabilidade e o ar de serenidade que desprendia. Ia sempre vestida de escuro. Pelo menos essa é a imagem que eu guardo na minha memória. Uma mulher de membros longos e movimentos pausados.

Na minha casa relatava-se, acerca dela e de Pinheiro, uma história muito romântica que nunca comprovei, mas da qual eu gostava.

Conheceram-se em Lugo. Ela era enfermeira vinda de Astúrias, e ele estava ingressado no hospital, quase cego, quando o trouxeram de Madrid.

Pinheiro fora apanhado numa armadilha no após-guerra na capital de Espanha. Dizia meu pai que por causa dum sopro dalgum. Vinha de Paris de estar com os representantes do Governo Galego no exílio, e parara num café para reunir-se com elementos de esquerda. Ali fora colhido preso, numa redada.

No cárcere passou-o mal e foi ficando cego. Minha mai contava que se fazia, entre os amigos de Lugo, recolha de comida, livros ou diferentes coisas para ele. Levava-lhas Milucho Gil Varela, irmão de Álvaro, quem fora Secretário do Partido Galeguista de Lugo,

(Álvaro Gil tinha sido preso e condenado à morte. Salvou a vida e, depois da Guerra “Incivil”, incorporou-se ao grupo de empresas dos Fernández de Lugo e ficou muito bem situado economicamente em Madrid. Desde ali fez de mecenas da cultura galega patrocinando economicamente todo tipo de projetos, como a Editorial Galaxia, da qual Pinheiro foi Diretor durante muitos anos. Álvaro tem ajudado a muitas personalidades do Galeguismo histórico, como Ramón Pinheiro ou Dona Virgínia, a viúva de Castelao. Justo é que aproveitemos a ocasião para irmos deixando testemunha do seu bom fazer com relação à nossa terra).

Para Ramón, da minha casa iam medicinas de todo tipo e botes de leite condensado Nestlé que, naquela época da fome, vendiam-se na Farmácia, quase como medicina. Pelos vistos, isso fazia-o meu pai às escondidas da minha mai: o leite era prioritário para os filhos…

A Pinheiro ajudou-o a sair do cárcere Antonio Rosón (presidente da Deputação de Lugo no franquismo), com quem manteve, de sempre, uma dívida permanente.

(Rosón foi, andando o tempo, o primeiro presidente da Autonomia de Galiza, não eleito, proposto por Adolfo Suárez. Dizem algumas línguas que isto foi assim por conselho de Pinheiro, por oposição a Bibiano Fernández-Osorio Tafall, que tinha sido chamado por Suárez para presidir a Galiza, como Tarradellas o fora para Catalunya. Tafall foi uma das personalidades galegas que tem alcançado um dos mais altos níveis da intelectualidade internacional e com um impressionante currículo galeguista (como anedota, dele tinha dito a atriz Joan Crawfor: «Tafall era como a última credibilidade que quedava à guerra de Espanha e ao antifascismo internacional».)

Quando Ramón saiu do cárcere trouxeram-no para Lugo, onde os amigos o podiam ajudar melhor. Entre outros, meu pai como médico e farmacêutico, quem fundara com ele as Mocidades Galeguistas de Lugo, e Exiquio Sánchez Cuesta, um dos melhores médicos que passaram por Lugo e um bom amigo de meu pai. Exiquio não tinha nada a ver com as ideias políticas nem galeguistas nem de esquerdas, mas era um profissional de grande categoria e uma boa pessoa. Isabel trabalhava de enfermeira com Exiquio Sánchez Cuesta.

E lá, no hospital, conheceram-se Isabel e Ramón. Ramón nunca vira a Isabel com claridade, porque no cárcere perdera a vista. Pero sabia que o cuidava muito bem. E eu suponho que, em Isabel, aquele home de ar frágil e de aspecto intelectual deveu despertar uma grande devoção, que sempre vi nela.

Contavam na minha casa que, como se conheceram sendo ele cego, Isabel tinha medo do que podia pensar Ramón dela quando a visse. Temia que não gostasse dela.

Diziam que, quando ele por fim a pôde ver, quando lhe pôde conhecer a cara disse-lhe:

“– Tu ÉS tal e como eu imaginara.”

Percebia-se que Isabel sentia grande admiração pelo seu home: mistura de sentimento protetor e cumplicidade com as suas ideias, ainda que dando a impressão de estar sempre a olhar todo desde um balcão. Eu julgava que era prudência e respeito. Mantinha uma certa distância no que se referia ao mundo das ideias, mas era experta em estabelecer ligações afetivas entre o monto de gente que visitava sua casa, naquele terceiro piso da rua do Arcebispo Gelmírez em Santiago.

Com Isabel nunca falei de política nem de galeguidade, ou do que fosse eu falar com Ramón naquela casa. Mas sempre percebi que tinha uma grande capacidade para fazer análises profundas das gentes e das cousas. Era uma magnífica anfitrioa e cozinhava muito bem.

Sempre estava lá. Com uma presença case imperceptível. Sem molestar, mas toda a quantidade de gente que visitava ao seu homem podia perceber que alguém, que não entrava na conversa, nem interferia nas decisões importantes que se tomariam, com segurança, naquela casa, mantinha o controlo doméstico do lar. Sempre protetora do Ramón e do fogar que tinham montado. Trazendo ora um café ora algum petisco até a sala onde reinava aquela “mesa camilha” que chegou a ser tão famosa em Compostela. Sem esquecer nunca o seu home.

Alguma vez tem mostrado preocupação polo labor que o seu companheiro desenvolvia. Sempre no sentido prático que a caracterizava. Parecia temer que tanta parolada ficasse apenas nisso: só palavras. Temia que todo aquele ir e vir de gente, não deixasse nada perdurável.

Mas Ramón Pinheiro deixou pouco escrito: para além dos artigos jornalísticos, apenas dois livros de ensaio, e a testemunha que Carlos Casares recolheu no seu livro (Piñeiro unha vida por Galicia). Conta este que Isabel chegou a regalar-lhe uma caderneta para que anotasse nela “o que falas com Ramóm”.

Isso mostra como a sua preocupação era real e clarividente. E também deixa ver o respeito e a devoção que tinha pólo seu companheiro.

Sempre estivo ao lado de seu home, amparando-o com o seu braço.

Lembro-a no enterro do pai de Ramón na casa de Armea, em Láncara, tomando conta da gente e da organização da casa

De estatura um pouquinho superior à dele, sempre a vim de sapato baixo. Ele caminhando a par dela com aquele andar inseguro de quem vê pouco, colhido do seu “ganchete”. Todas as tardes desde a casa de Gelmirez até a Rosaleda, à casa de Garcia- Sabell; a Norte-América, a Paris, a Láncara. Cuido que não se separaram muito.

Isabel foi como uma de tantas mulheres de galeguistas. Fiel ao seu companheiro e, por isso, fiel as ideias que ele defendia. Também fiel ao jeito que ele tinha de as defender. Em segundo plano, atendendo às suas necessidades materiais e afetivas. Assegurando-lhe a intendência material e espiritual. Partilhando a sua vida, mas sem entrar demasiado nela.

Neste ano 2009 em que as letras galegas se dedicam a Ramón Pinheiro López quero dedicar eu a mais carinhosa lembrança à sua mulher, ISABEL, companheira da sua vida, amparo do seu andar, cúmplice das suas ideias, sem que por isso necessitasse entendê-las, e que o amou até a sua morte com dedicação total.