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Raiana Cabral: «A defesa e a eficiência dos recursos naturais e o respeito à dignidade humana são as grandes questões deste século»

Raiana Cabral, doutora em biologia
Raiana Cabral, doutora em biologia

A Doutora em Biologia, Raiana Cabral, brasileira, é especialista em ciências do solo, ecologia de ecossistemas costeiros e etnobiologia.

O passado mês de outubro tive o prazer de conversar com ela quando estava pronta para apresentar a sua tese de doutoramento. Para além de conversarmos com fluidez das diferenças nas manifestações do patriarcado, na socioeconomia, assim como das semelhanças entre a Galiza e o Brasil, fez favor de me responder muito amavelmente e de uma maneira muito pedagógica a umas perguntas para as quais a resposta nos pode ajudar a compreender realidades que nos desafiam no dia de hoje local e globalmente.

Está a fazer a tese sobre o relacionamento entre as superfícies salinas e os mangais. Um exemplo de interconexão entre diferentes ecossistemas do Brasil. Poderia falar-nos disto um bocado mais?

Os mangais (manguezais, no Brasil) são ecossistemas típicos de áreas costeiras tropicais. Essas áreas são conhecidas como berçários naturais pela alta produtividade de nutrientes que mantêm grande parte da base da cadeia trófica marinha. Quando os mangais estão em áreas submetidas a um clima árido (poucas chuvas e elevadas temperaturas) planícies hipersalinas podem ser formadas na borda deles (numa transição entre a “área seca” e os mangais, as “áreas húmidas”) ou dentro da floresta de mangal. Essas áreas são frequentadas por diversos animais (crustáceos, mamíferos e aves, por exemplo) e são ambientes estratégicos para a recolonização do mangal em caso de aumento do nível do mar (no contexto de mudanças climáticas que estamos experimentando).

Comentava-me o outro dia que estas superfícies são objetos valiosos para as empresas capitalistas, que as utilizam para o cultivo do camarão, causando, em muitos casos, a perda de trabalho na população. Pode pôr algum exemplo?

Os mangais como um todo são áreas muito vulneráveis, porque estão localizados ao longo de toda a zona costeira brasileira, principal área povoada e economicamente ativa desde o Brasil colonial. Ao longo da história os mangais foram substituídos principalmente por cidades e empreendimentos industriais. As planícies hipersalinas foram por muitos anos transformadas em salinas para a produção de sal para consumo humano, atividade que entrou em declínio no final do século XX. Atualmente, as maiores ameaças aos “salgados” ou “apicum”, como essas regiões são conhecidas localmente, são as fazendas para o cultivo de camarão em cativeiro. Além de impactos ambientais como a desflorestação ilegal de áreas de mangue e despejo de resíduos sem tratamento, os maiores impactos dessas atividades estão relacionados com as populações tradicionais de pescadores que vivem nessas regiões. Isso porque as empresas normalmente dificultam o acesso dessas pessoas ao mangal, ao rio e ao mar, áreas de pesca artesanal pelo bloqueio de passagem. As empresas que se estabelecem nessas áreas geralmente afirmam que são atividades que proporcionam emprego e desenvolvimento, porém é mais comum o desenvolvimento de grandes conflitos pelo uso da terra devido às grandes pressões exercidas sob a população local e a empregabilidade sazonal.

Acho que o dano poderia ter semelhanças com o que acontece nas rias galegas. Mudando um bocado de cenário, como influi a desflorestação da Amazónia na disponibilidade de água potável?

A Amazónia Sul-Americana está relacionada com muitas funções ambientais, muitas delas complexas, entre elas a disponibilidade de água em algumas partes do Brasil. Os estudos apontam para os chamados “rios atmosféricos” serem a principal relação entre a área de cobertura florestal da Amazónia e a disponibilidade de água. Esses “rios” são formados por massas de ar carregadas de vapor de água, muitas vezes acompanhados por nuvens, e são movimentados pelos ventos. Esse vapor de água é, em boa parte, proveniente da evaporação da floresta e transforma-se em chuva potencial para outras áreas no Brasil. Com o cenário de mudanças climáticas e a desflorestação ilegal da Amazónia muito desse fluxo atmosférico está ameaçado e, portanto o abastecimento de água está a se complicar no Brasil. Mais sobre este fenómeno pode ser lido aqui ou aqui.

Vi um dia num documentário que os indígenas tinham garantida a sua terra e que existem grupos paramilitares privados às ordens de grandes companhias de soja que chegam mesmo ao assassinato para se fazerem com as terras. É isto mesmo assim?

Sim. Infelizmente os conflitos ambientais são muito comuns no Brasil, sobretudo por questões agrárias e a disputa de território por populações tradicionais como as populações indígenas, pescadores e descendentes de escravos (quilombolas). Está disponível na internet um mapa detalhado de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil que é muito impressionante nesse sentido, pois destaca exatamente onde existem problemas. E são muitos!

Há gente ameaçada pela defesa dos recursos no Brasil?

Sim, e não são poucas! A Comissão Pastoral da Terra mantém uma atualizada lista de pessoas ameaçadas e sob proteção do estado por estarem relacionadas com a defesa de interesses comuns e meio ambiente. Em relação com a pergunta anterior, recomendo a leitura dessa matéria voltada para a Amazónia, na qual o autor relata que 174 pessoas em 2014 estavam ameaçadas de morte por conta da justiça ambiental e em que são entrevistadas algumas dessas pessoas.

O que acha das energias eólicas, é na realidade uma energia limpa?

Eu acredito que o termo “energia limpa” é uma estratégia de marketing para vender uma ideia ou produto. Explico. Todas as formas que possuímos para gerar energia elétrica geram maior ou menor impacto. Esse impacto pode ser ambiental, mas também social. Em termos de impacto ambiental, a geração de energia eólica é muito interessante, pois utiliza um recurso quase que ilimitado para a geração de energia. Porém, o processo para a sua instalação e distribuição pode ser muito problemático. Os problemas vão de ordem de conflito de uso do território com as populações tradicionais e ambientais a irregularidades nos licenciamentos ambientais e instalações, mas faltam estudos relacionando os impactos sobre a fauna e os humanos que vivem nos arredores. Caso tenham maior interesse nesse tema recomendo um amplo debate levantado neste artigo sobre a produção energética e os conflitos relacionados com ela.

Na Galiza temos aberto um conflito com a mega-minaria. Acho que olhar para outros locais nos pode ajudar na compreensão desta realidade. Existe a mega-minaria no Brasil. Poderia falar-nos dos perigos dela?

No Brasil existem atividades de mineração principalmente relacionadas com a extração de ferro, ouro, chumbo, zinco e prata, carvão, agregados para a construção civil, gipsite e cassiterite. Cada tipo de extrativismo está relacionado com um perigo diferente. O governo Brasileiro categoriza principalmente os problemas relacionados com a poluição, considerando como secundário agravantes que eu particularmente considero graves, por exemplo as alterações ambientais, conflitos de uso do solo e geração de áreas degradadas com difícil recuperação. É uma questão muito delicada e que necessita ainda um amplo debate e eficiência na aplicação das leis ambientais no momento da instalação e na fiscalização contínua desse tipo de atividade.

Acha que a defesa dos nossos recursos é importante?

A defesa e a eficiência dos recursos naturais e o respeito à dignidade humana são as grandes questões deste século. A nossa sobrevivência enquanto espécie depende dessa compreensão. Espero que não demoremos muito em desenvolver e ampliar a consciência de que tudo e todos estão conetados. Essa atitude deve ser individual, mas, sobretudo coletiva, pois já não temos muito tempo a perder.

Doutora Cabral, muito obrigada pelo seu tempo, disponibilidade e amabilidade.

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