Norma linguística e afetividade identitária/identidade afetivizada

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I: a afetividade identitária/a identidade afetivizada
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Brétemas

Há alguns anos desenvolvim um conceito que me dá jeito para explicar alguns fenómenos sociais. Suponho que reiventei a roda com ele mas não encontrei o assunto na revisão bibliográfica que na altura realizei; evidentemente, porém, só chego a algumhas línguas e a alguns textos…: afetividade identitária; e; já, o seu reverso processual: identidade afetivada.

Com ele quero referir-me à vertente afetiva que muitas identidades tenhem, certamente; mas, de modo específico a afetividade que se torna identitária, sem que a priori o vínculo entre o objeto ou o fenómeno que provoca a afetividade e a posterior elaboração identitária existissem. É umha elaboração identitária entranhada a partir do afeto por umha cousa, fenómeno, ideia, em si, sem essa elaboração estar baseada nos efeitos primeiros da cousa, ou fenómeno ou ideia… Identificar-se com algo por meio dumha afetividade prévia que motivou a aproximação a esse algo. Como escrevia, também pode ser contemplado o processo inverso, sem ser incompatível com aquele: umha identidade que gera afetividade, umha identidade afetivizada, onde aquela é sustentada (também) no afeto gerado.

A afetividade identitária pode conduzir a ações ou, mesmo, identificações posteriores, que não estavam no horizonte das pessoas e que não teriam lugar sem essa afetividade. Ela é, pois, canal, para outras atividades ou afetos.

Em geral, pode pensar-se nessas afetividades como funcionando de modo positivo em relação à identidade, mostrando querência. Mas há, igualmente, modo negativo; certamente, poderá-se falar de anti-identidades afetivas e afetividades anti-identitárias, ou algo similar, quando o indivíduo ou o coletivo que for, mostra, em relação a um fenómeno, objeto, ideia, etc., umha atitude rejeitamento sentimental estrutural (não pontual nem conjuntural) a umha eventual identificação ou ao que ela signifique.

O caso é que essa afetividade vinculada a identidades é, em muitos casos, o motor da ação e da atitude das pessoas ou do coletivos. E, sustida no tempo, essa afetividade gera lealdades e, até, fidelidades, difíceis de quebrar, em muitos casos.

Tento explicar-me com alguns exemplos: comecei a pensar nisso quando, sem procurá-lo, num trabalho de campo sobre a reação de pessoas assistentes aos passes do filme Apóstolo em Santiago de Compostela, numha equipa da Rede Galabra detetamos que muitas não iam habitualmente ao cinema; e, bastantes, simplesmente, era a primeira vez que iam no ano ou até em anos; não assistiram por ter atração polo cinema mas polo afeto ao assunto: Santiago, o Caminho, o Apóstolo; estavam ali, algumhas apesar de ser um filme a visionar numha sala comercial. Isso levou-me a pensar em pessoas nada ecologistas que defendem decididamente que não se construa um centro comercial num espaço natural porque ali jogavam na infância e que grupos ecologistas querem preservar: estão na mesma luita que estes mas por diversas razões. Ou o pai, abnegado, que vai a um concerto porque a sua filha toca numha banda, ainda que não goste nada do tipo de música em questão, que, aliás, está disposto a defender com ela porque é umha atividade mui importante para a sua filha. É o afeto o que moveu a pessoa a fazer algo que, se não existisse esse afeto, não faria porque esse algo estava fora do seu horizonte: E, pode, em casos, acabar por identificar-se, por sentir-se identitado nessa expressão, nesse algo: acabar por identificar-se com o ecologismo, com o filme ou o cinema de animação, com a música dita clássica, resultado dum processo de afetividade identitária.

Isso levou-me a pensar em pessoas nada ecologistas que defendem decididamente que não se construa um centro comercial num espaço natural porque ali jogavam na infância e que grupos ecologistas querem preservar: estão na mesma luita que estes mas por diversas razões. Ou o pai, abnegado, que vai a um concerto porque a sua filha toca numha banda.

Rivalidades ou rejeitamentos de identidades sociopolíticas ou culturais, por caso, são evidências daquela anti-identidade afetivizada a que me referia.

Além desses fenómenos de veículos e canais para transitar a atividades e eventuais identificações por razões afetivas não inerentes ao objeto da identificação, estão aquelas identidades que nascem do modo em que fenómenos, cousas, ideias, o que for, forom apreendidos inicialmente e da projeção sentimental que estas jogarom no seu momento. Eu sou de prática reintegracionista, desde há muitos anos, mas ainda me sensibilizo, em algumha oportunidade, quando vejo o diminutivo -iño/a por aí escrito, com afeto; e, na minha mente, ainda se debuxa muitas vezes com ñ quando o ouço. Porque, quando eu começava a aprender e ler galego, alá polo ano setenta e cinco/ setenta e seis, com onze ou doze anos, e desde aquela durante anos, entranhei, como tanta outra gente, esse diminutivo como elemento emblemático da língua e da Galiza. Emblemático de afetos e sentimentos, ele expressando ternura, ou humildade, ou carência, ou tristeza, ou impotência, ou submissão, ou identidades…

Eu sou de prática reintegracionista, desde há muitos anos, mas ainda me sensibilizo, em algumha oportunidade, quando vejo o diminutivo -iño/a por aí escrito, com afeto; e, na minha mente, ainda se debuxa muitas vezes com ñ quando o ouço.

Essa identificação com um grafema foi puramente sentimental e carrega umha força atrativa, de imanização extraordinariamente potente; e custa muito desfazer-se de afetos devidos em lealdades, por entranhados, apreendidos em determinadas circunstâncias, mesmo se se considerar que eles empecem outras possibilidades melhores, também na ordem sentimental. Por quê? Entre outras cousas porque, como ficou dito e espelhado, no caso do ñ nele projetei tantos sentimentos e, até, mundivisões, que me é preciso um árduo processo de transformação, racional, de conhecimento, de auto-análise também (talvez de algumha auto-honestidade, acho eu, mas prescindo de enveredar por aqui para não desviar a atenção ao assunto) e de reelaboração sentimental, em muitos casos (acho bem difícil existir um elemento identitário sem geração e, até, de apreensão, de emoção). O exemplo é humilde e por isso mesmo é utilizado aqui.

Sem, necessariamente, épica; a escolha de posições, sempre relativa mas, em muitas ocasiões, com margem de atuação e decisão, é também umha escolha (cons-)ciente, que procura benefícios, só que outros e reversos dos colocados como primeiros na hierarquia do comum ou do poder que outras pessoas elaboram.

As projeções sobre os objetos nestes casos não são prévias; são ou simultâneas ou, fundamentalmente, posteriores, resultados da projeção dum impacto ou, mais comummente, das necessidades (de toda a índole) de justificação e acordo com a decisão prévia (a identificação com o objeto) que as pessoas tenhem. Exceto situações bruscas, em que a pessoa se considere enganada ou mal informada, o habitual é isso ou um processo gradual, e, muitas vezes, complexo, de mudança. Todas essas projeções, mais ou menos racionais, estão determinadas por umha adesão sentimental primeira e primária ou por umha secundária, a posteriori.

II. Norma linguística e quadro de situação

Isso acontece, em muitos casos, com pessoas que tenhem posição sobre a orientação normativa do galego (o qual não se produz com outras pessoas noutros quadros de situação, por exemplo, em relação à norma do espanhol: ela é um dado aquirido, de funcionamento neutro, exceto em alguns casos). Algumhas tenhem ideias sobre a Galiza e nela encaixam a sua ideia sobre a norma; mas outras estavam num quadro de situação determinado e fizerom-se a/de umha norma em função desse quadro; se estivessem noutro diferente, doutro se fariam, quiçá… (entendamos, provisoriamente e em termos corriqueiros, por quadro de situação, os contextos marcantes dumha pessoa para tomar decisões).

Quer dizer-se, mais cruamente: penso que muitas pessoas que, no caso galego, tenhem posição normativa, operarom por umha decisão, derivada em identificação, convertendo-se a sua numha afetividade identitária ou numha identidade afetivizada. Nessa afetividade, argumentos racionais tenhem pouco peso e são mais decisivos, provavelmente, os de índole sentimental (individual/ista e/ou coletiva/ista) para a auto-afirmação ou para umha, muitas vezes custosa, mudança; ainda que, depois, se revistam de lógica racional e objetivável -até, por vezes, objetiva- as próprias posições ou se acuda a essa lógica para alicerçar as próprias posições).

Por isso, se entenderem racionalmente a razão d@ Outr@, aproveitam mudanças no quadro de situação que lhes facilitem trânsitos ou afirmações, que fagam compensar esforços e carências: lógico. Mais ainda, porque os parâmetros de discussão (sobrevivência do idioma, utilidade, autenticidade, etc.) podem ser submetidos ao depende e o seu cálculo é sempre incerto e a contrafatualidade e o ad futurum estéreis por impossível verificação.

Que o assunto é sentimental, em boa medida, mascarado muitas vezes de decisões patrióticas/racionais ou razionais (de ter razão), evidencia-o o facto de juízo de pessoas que opinam sobre a norma (e sobre o sentido e destino da língua) sem estarem direta nem sentimentalmente (ao menos, fortemente) envolvidas nela aparecer como mais isento; normalmente, porque não a usam e porque o seu uso/não uso não modifica o seu estatuto nem a sua posição social ou política; nem a sua afetividade identitária nem precisa adaptação a novos quadros de situação.

Que o assunto é sentimental, em boa medida, mascarado muitas vezes de decisões patrióticas/racionais ou razionais (de ter razão), evidencia-o o facto de juízo de pessoas que opinam sobre a norma (e sobre o sentido e destino da língua) sem estarem direta nem sentimentalmente (ao menos, fortemente) envolvidas nela aparecer como mais isento; normalmente, porque não a usam e porque o seu uso/não uso não modifica o seu estatuto nem a sua posição social ou política; nem a sua afetividade identitária nem precisa adaptação a novos quadros de situação.

Isto tudo são hipóteses; mas, se houver acordo nelas (nas elaborações identitárias por via afetiva, ou do afeto por via da identidade, na dependência dos quadros de situação e as impossibilidades de verificar o sucesso relativo das alternativas em jogo), a ideia de todas as opções impõe-se… como racional (também como sentimental, mas o sentimento de coesão social/nacional não está nas prioridades, e, em casos, nem nos horizontes do conjunto que tem posição; mesmo não se pensa nesses termos; de facto, o elemento sentimental, também pode acontecer com o racional- é instrumento mais bem remetendo para umha lógica individual que coletiva). A adesão normativa é contingente (estou certo que, mesmo, em pessoas decisivas nas diversas orientações). E o pensamento do que é/seria correto ou conveniente é de menor peso que o esforço a fazer caso se sentir na posição contrária (isso explica também as duplas adesões para conservar posições e ganhar legitimidades e algum alívio de consciência: a retórica/desideratum e a prática, que é a determinante).

Cousas que acontecem quando umha língua é mais um símbolo que umha língua e quando se interioriza que não há solução hegemónica: que o galego tem a causa normalizadora, perdida; por causa d@s galeg@s, claro. Isto conduz a pensar noutros termos e elementos de coesão e vertebração identitárias, além da língua (que se veria mais fortalecida se se retirasse, a ela e à gente, a pressão sistemática sobre a sua perentoriedade): de novo, aí anda no horizonte a afetividade identitária, obstáculo e possibilidade, depende… Este é, sim, o caso dramático da Galiza em termos de sobrevivência como entidade coesa e diferenciada.

Todas as opções..: nem faz falta, ainda que bem seria, compreender a lógica do outro, (também de quem usa de regra o espanhol; de novo não enveredo por aqui para não complicar mais). Simplesmente, saber que existem, e nutrir-se do que elas podem fornecer, sem medo à contaminação, que esta até pode ser boa. Por pôr um exemplo, que é umha das minhas teimas pessoais: pouco sabemos muitas pessoas da nossa expressividade patrimonial, neste caso a linguística-cultural (de cantigas a sentenças, de contos a provérbios) e há reintegracionistas que tendem a ver com desconfiança determinadas formas sob suspeita de castelhanização ou popularismo dialetalista, enfim…

Se calhar, ainda me atrevo a comentar o que penso sobre isto; e de como, de tanto querermos a língua e nela sermos tão intensos, descuramos alguns outros elementos vertebradores e coesivos; e, talvez a Galiza como entidade (ao menos a desejada polas pessoas que tão amadoras e amantes somos, da língua e da Galiza) que nos dá prazer como tal, com que nos identificamos sensivelmente e para quem, com as suas gentes, desejamos o melhor, esteja indo polo esgoto… Mas vou, no próximo, a outro assunto espinhento, mas mais reduzido: -om vs. -ão

[Este artigo foi publicado originariamente em Viva Cerzeda]