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Karina Pereira: “O sistema de ensino público passou a funcionar como um agente desgaleguizador desde 2010”

Em junho de 2018 foi apresentado na Faculdade de Filologia da Universidade da Corunha (UDC) o Trabalho Final de Grau (TFG) «As escolas Semente como exemplo de planificação linguística no âmbito educativo».

Realizado por Karina Pereira Rei, o trabalho estuda os modelos de imersão linguística aplicados em diferentes contextos educativos e descreve e analisa de maneira pormenorizada o sistema desenvolvido pelas Escolas Semente, tirando um primeiro conjunto de conclusões sobre as suas fundamentações e sobre a sua validade.

Falamos com Karina Pereira para conhecermos melhor as caraterísticas do trabalho, o primeiro desta natureza feito sobre a Semente, e a importância no seu percurso académico.

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Com este trabalho concluíste na Universidade da Corunha o grau de Galego e Português: Estudos linguísticos e literários. Aderiste, aliás, a um programa académico que che permitiu realizar, simultaneamente, os estudos do grau de Inglês: Estudos linguísticos e literários. Porque decides fazer estes estudos e porque escolhes estudar as Escolas Semente no teu trabalho final de graduação? 

Penso que a minha decisão de estudar o grau de Galego e Português estivo relacionada com a sociolinguística. Lembro que foi na bacharelato quando começamos a estudar mais sobre estes temas e comecei a tomar mais consciência da problemática do galego. Foi esta preocupação pelo futuro da minha língua e a vontade de a pôr em valor o que me levou a querer estudá-la com mais profundidade. Falo só de estudar Galego e Português porque, realmente, era o grau que eu tinha em mente realizar. O grau em Inglês foi uma oportunidade que surgiu durante os meus estudos e que decidi aproveitar para ampliar os meus conhecimentos e melhorar o meu currículo, mas realmente a minha paixão é o galego-português.

Quanto ao meu trabalho final, a decisão deste tema está um pouco relacionada com o que acabo de explicar, para além de com a minha própria experiência. A escola é um fator clave para o futuro do galego, é ali onde as crianças que não têm esta língua como materna a irão aprender e é ali onde aquelas que já a falam a podem perder. Isto foi, de facto, o que quase me acontece a mim e o que estou a lutar para não acontecer à minha irmã. Refiro-me a que na minha casa somos galego-falantes mas, até começar a universidade, eu só falava galego, basicamente, no âmbito privado e em contextos não urbanos, e não era a única dos meus colegas nesta situação. Já a minha irmã, que entrava no primário quando eu comecei com o trabalho final, via que não ia por esse caminho, mas diretamente pela substituição total do galego pelo castelhano, o que me preocupava bastante. Por isto quis focar o meu trabalho no papel do galego no ensino. No início, não tinha muito claro o tema concreto e ainda que escutara falar das Escolas Semente, não pensara nelas. Foi falando com o meu tutor, Isaac Lourido, que surgiu o nome e, com o seu apoio, decidi estudar um projeto que me parecia não só interessante, mas muito necessário no nosso país.

A falta de estudos prévios sobre a Semente, bem como a relativa escasseza de materiais disponíveis para uma análise sistemática, foram aspetos que dificultaram a realização do trabalho. Como afetou isto ao desenho da investigação e como conseguiste ultrapassar estas dificuldades?

É certo que notei a falta de estudos prévios e também de dados como a percentagem de alunos/as galego-falantes e castelhano-falantes de cada escola ou uma avaliação dos conhecimentos do galego ao entrarem e ao saírem da escola. Porém, tenho de reconhecer que não considero que me faltassem materiais para descrever o projeto e o funcionamento das escolas, o que tenho de agradecer ao meu tutor e, com certeza, a todos os integrantes do Projeto. O meu tutor pôs-me em contacto com a Semente de Compostela, a primeira da Galiza, e, com a aprovação de todas as Sementes abertas até aquele momento, enviaram-me os documentos que podia necessitar. Assim, tive acesso, por exemplo, ao Projeto de imersão linguística das Escolas Semente ou aos Critérios para a implantação de novas Escolas de Ensino Galego. Ainda mais, pude visitar várias das escolas, falar com algumas educadoras e sempre estiveram dispostos a resolver as minhas dúvidas. Nas visitas, pude ver a divisão das salas de aulas em recantos, explicaram-me detalhadamente a rotina do dia a dia, pude conhecer alguns dos desafios a que se enfrentaram as educadoras, o processo de constituição da escola… Por outra parte, assisti às jornadas que a Semente Lugo organizou em 2018, onde também pude recolher mais informação não só sobre o Projeto, como também sobre o ensino na Galiza e a nível estatal.

Embora o projeto pedagógico da Semente costume ser definido, simplesmente, como um modelo “de imersão linguística”, no trabalho alargas e matizas essa caraterização restrita. Que elementos doutros modelos pedagógicos e doutros modelos de planificação linguística encontramos nas Escolas Semente?

As Escolas Semente nasceram como uma alternativa ao modelo de planificação linguística do sistema público que especialmente, desde o 2010, com o novo decreto, passou mais a funcionar como um agente desgaleguizador do que uma instituição de defesa e preservação da língua. Em contraste, um dos objetivos principais das Sementes é assegurar o conhecimento do galego por parte das crianças. Contudo, também se diferenciam do sistema público na pedagogia. Neste sentido, o projeto Semente baseia-se na coeducação, na laicidade, no assembleiarismo, na interação com a natureza e no respeito pela autorregulação da criança. Tem como objetivo, então, formar pessoas críticas com a sociedade, independentes, seguras de si mesmas, criativas e respeitosas com as demais e com o meio em que vivem. Para isto, não se adscrevem a nenhum modelo pedagógico concreto, mas recolhe traços de diferentes sistemas, como Montessori ou Waldorf, por exemplo.

No entanto, como pontualizei, o objetivo principal do Projeto é assegurar que as crianças adquiram e conservem a língua galega, para o que seguem o que se conhece como um “modelo de imersão total precoce em língua menorizada ou língua segunda”, que é um dos diversos modelos de imersão existentes. Todos eles usam a língua não materna do alunado (a sua língua segunda ou L2) para ensinar, no mínimo, 50% dos conteúdos e alcançar o objetivo de desenvolver indivíduos realmente bilingues e biculturais.

Assim, as crianças adquirem uma nova língua de forma natural sem que a sua materna perigue, já que a continuam a usar fora da escola e tem maior prestígio na sociedade em que vivem. Em suma, os modelos de imersão logram que as crianças mantenham a sua língua materna (a dominante na sociedade) e adquiram uma nova língua (a de menor prestígio). Ainda que, como disse, há diferentes modelos de imersão (precoce parcial, dupla…), de acordo com avaliações realizadas, é a “imersão total precoce” (a usada nas Escolas Semente) a que parece dar melhores resultados no domínio da L2. Esta imersão total precoce consiste, concretamente, em usar como a única veicular na escola a língua que se pretende que as crianças adquiram.

Neste caso concreto, quando falamos de língua materna ou dominante estamos a falar do castelhano, e quando falamos de L2, do galego. Desta forma, nas Sementes usa-se só o galego, pois entende-se que o castelhano está assegurado pelo contexto e que uma educação plena em galego não dificulta as suas competências na língua socialmente dominante. Contudo, há que assinalar que este tipo de programas está pensado para crianças que têm a língua maioritária como materna e que nas Escolas Semente, em contraste, predominam as crianças de famílias galego-falantes. Isto, obviamente, deve-se ao que já mencionei: sendo a escola pública um meio desgaleguizador das novas gerações, as mães e pais consciencializados com a nossa língua e com a nossa cultura vão ao encontro desta alternativa. Ainda, este facto não afeta o desenvolvimento e os objetivos, pois o alunado castelhano-falante adquire o galego na Semente e o galego-falante consolida-o e serve de reforço para as suas companheiras e companheiros. Aliás, o conhecimento do castelhano tampouco periga nas crianças que falam galego dentro e fora da escola, pois no contexto em que vivemos, o conhecimento da língua do estado está assegurado.

O debate sobre o caráter cooperativo da Semente, diferente na sua matriz tanto do sistema de ensino público quanto das iniciativas privadas, é um dos mais recorrentes quando falamos do projeto. Quais são as chaves para entendermos o surgimento da Semente e a sua natureza cooperativa?

As Escolas Semente autodefinem-se, de facto, como “iniciativas sociais sem ânimo de lucro”, são escolas de ensino comunitário, pelo que não são nem públicas nem privadas. Há que indicar, antes de fazer referência à sua distinção do ensino público, que receberam algum financiamento por parte de organismos como a Deputación da Coruña, que lhes outorgou um prémio em 2016. Porém, este financiamento não é regular, pelo que não se podem considerar escolas públicas. Não sendo assim, tende-se a pensar que são privadas, mas as Sementes não procuram lucro: os possíveis benefícios são destinados a continuar o projeto e não ao lucro pessoal. Assim, por exemplo, se se abrir uma nova Semente no país, os ganhos que as outras puderam ter irão destinados a pôr em marcha o novo centro.

Para mim uma das chaves para entendê-las como “iniciativas sociais sem ânimo de lucro” está no modo em como se financiam. Por uma parte, contam com as cotas mensais das mães e pais das crianças. Neste ponto, penso que é importante salientar que oferecem uma bolsa para que as famílias com dificuldades económicas levem igualmente as suas filhas e filhos e que, na medida do possível, ninguém com interesse no projeto fique fora dele. Por outra parte, as escolas também se financiam graças à venda de material (livros, jogos, camisolas, etc.) e à organização de atividades como concertos ou jornadas. Já por último, também contam com o apoio de pessoas que, não tendo filhas ou filhos que vão para algum destes centros, mas entendendo a relevância do Projeto, colaboram com pagamentos mensais ou pontuais.

Cada ano que passa, observamos que aumenta tanto o número de Escolas Semente quanto os níveis educativos ofertados. Qual é o balanço que podemos fazer do seu percurso e da eficácia do seu modelo, se o compararmos com as outras alternativas? Poderá no futuro um crescimento ainda mais notável do projeto influenciar as planificações linguísticas no ensino público?

Tendo em conta que a primeira Semente, a de Compostela, se constitui no 2011 com tão só 3 crianças e que no curso escolar 2018/2019 já eram cinco os centros abertos com mais de 80 crianças em total, o balanço é, obviamente, positivo. Para falarmos de cifras, aliás, há que ter em conta que estes centros, como já disse, não são financiados pelo estado nem têm os meios que possa ter uma escola privada para fazer publicidade ou ampliar os espaços para dar cabimento a todas as petições. Contudo, apesar das limitações que possa ter, o Projeto Semente continua a espalhar-se pelo país e continuam-se a abrir escolas. De facto para o ano 2019/2020, abre a Semente da Corunha, chegando assim a serem 6 as Sementes.

A respeito da eficácia do modelo em comparação com as outras alternativas, só conto com os dados proporcionados pelas educadoras nas minhas visitas. Neste sentido, pude saber que as crianças de famílias castelhano-falantes adquiriram o galego e que as de famílias galego-falantes o mantiveram. Especificamente, foram-me referidos casos de crianças que continuaram a usar o galego no primário em escolas de âmbito urbano com companheiras e companheiros castelhano-falantes. Se bem sou consciente de que estes dados não são objetivos e que não se pode generalizar, os relatos das educadores diferem em grande medida daqueles casos de famílias galego-falantes com crianças que deixam de falar galego, ou pioram notavelmente a sua competência, ao entrarem nas escolas públicas.

Considerando que, enquanto as escolas públicas não são quem de tomar medidas para frear a redução de galego-falantes, as Escolas Semente, que si tomam medidas para o fazer, serão sempre mais eficazes.

Quanto à influência no ensino público, do meu ponto de vista, o crescimento das Escolas Semente sim pode levar a influenciá-lo. O seu crescimento é um indicador de que as mães e pais buscam um novo sistema educativo, alternativo ao sistema público. As Sementes oferecem uma alternativa ao modelo linguístico ofertado nas escolas públicas e uma combinação de diferentes pedagogias. Assim, lutam por formar indivíduos consciencializados com o seu redor e com o mundo e realmente plurilingues. A respeito deste último ponto, penso que são poucas as escolas públicas que podem fazer esta afirmação e, embora se conheça esta fragilidade, parece que desde o governo não se atua ao respeito. Uma alternativa como esta poderia fazer com que as cidadãs e os cidadãos demandem câmbios nas políticas linguísticas. No entanto, também há que considerar a possibilidade de que os responsáveis destas políticas tenham outros objetivos e que, para eles, o facto de existir um projeto deste tipo, que tem a finalidade de preservar e promover o uso da língua galega entre as novas gerações, não suponha mais que uma pedra no seu caminho a metas que nada têm a ver com a proteção da nossa língua e da nossa cultura. Em suma, o mais sensato seria que, se o Projeto continuar a aumentar e há uma demanda deste tipo de modelo linguístico, os responsáveis da educação na Galiza reflitam sobre que leva as mães e os pais a escolherem estas escolas em lugar do ensino público e comecem a fazer mudanças para que todas as crianças se beneficiem deste sistema ou de um semelhante.

Na atualidade estás a realizar, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, um mestrado para o ensino do português como segunda língua. De que modo ligas a formação recebida na Universidade da Corunha com este novo percurso formativo e quais são as tuas expetativas académicas e profissionais para o futuro?

Sinceramente, ainda que o facto de também aprender português no meu grau foi importante à hora de decidir cursar filologia na Universidade da Corunha e não noutra, nunca pensara em ser professora de português. Foi na faculdade onde a minha primeira aula de português, tanto de língua como de literatura, e comecei a ter vontade de aprofundar mais no seu conhecimento, algo no que, obviamente, influíram as professoras e professores da faculdade. Mais concretamente, penso que nunca teria feito este mestrado de não ser pela professora Cilha Lourenço Módia, quem me falou dele no segundo ano do grau e que fez com que começasse a pensar, seriamente, em ir para Portugal, algo do que não me arrependo.

Enquanto às minhas expetativas académicas, só pensei nelas a curto prazo. Ainda vou ficar um ano mais no Porto para realizar o meu estágio e só espero que seja ainda mais produtivo que o primeiro e que possa desfrutar já não só aprendendo, mas também ensinando. Já no futuro profissional, a minha intenção é ser docente de português na Galiza, pois é para o que me estou a formar; mas, se for possível, também me encantaria poder ensinar língua e literatura galegas. Espero poder transmitir às minhas futuras alunas e alunos a paixão pela língua em geral, e pelo galego-português em particular, e poder fazer, assim, uma pequena aportação a nível individual para voltar a aproximar o que, por desgraça, se concebe em ambos os países como duas línguas e culturas separadas.

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