História da Galiza como história crítica de Espanha

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A vida intelectual, como a vida em geral, é cheia de surpresas. Uma das mais grandes que teve nos meus estudos de história das ideias foi topar a revolta do coronel Solis de 1846. «Depois de tanto estudo histórico, depois de tanto Rexurdimento e tanta Rosalia e Castelao… Porque é que ninguém me falara dela antes?». Isso foi o que pensei. Mas passei da pergunta retórica à pergunta real em segundos: Porque ninguém falara dela? Porque? A clave é saber o porquê, mas este pode ser também o eixo em torno do qual repensar a necessidade de estudar a história galega de outro ponto de vista. Vejamo-lo devagar.

Bem como na literatura, na história também existe uma espécie de cânone daquilo que tem de ser aprendido ou lido. O que sabemos é que no ano 1846 reinava a rainha Isabel, que era então uma rapariga, e governava o general Narváez com mão de ferro. No outono daquele ano eclodiu em Catalunya a chamada segunda guerra carlista, na que convergiram a mala situação económica do reino e as questões dinásticas dos Bourbons. Essa guerra, que mais bem foi uma série contínua de revoltas, durou três anos. A vitória, é sabido, foi para o governo central. Foi uma vitória dos liberais moderados, dos conservadores não tradicionalistas e do centralismo. Isto é o que a história canónica nos vai contar sobre esse ano: ganharam os bons.

Mas, na Galiza, meses antes da revolta carlista catalã, em abril daquele ano, quem se rebelou contra o autoritarismo de Narváez? O liberalismo progressista; não o tradicionalismo carlista. Isto é o feito interessante de verdade, porque quebra o relato do liberalismo centralista, que era o dominante.

O liberalismo foi centralista (e de certo jeito segue a ser) a imitação do jacobinismo francês. Mas o jacobinismo não é, por si próprio, liberal, senão que tem as suas raízes no centralismo borbónico. É, simplesmente, francês; deixemo-lo assim. Não há nenhuma razão objetiva para que o liberalismo não pudera apoiar uma organização territorial alternativa em outros Estados. Assim foi como o entenderam os liberais progressistas galegos quando constituíram a Junta Superior do Reino da Galiza em Compostela em abril desse ano.

Pensemos no assunto duas vezes.

Ou seja, que os mártires de Carral, em realidade, ofereceram uma alternativa possível ao modo de ver as coisas do dogma recém imposto do centralismo liberal, que uma e outra vez teve de lutar contra um tradicionalismo que aceitava, não obstante, a organização foral do reino. Visto assim, pode-se compreender o silêncio da historiografia liberal do XIX: a guerra carlista era uma confirmação da posição centralista (reaccionários=autonomistas, ergo, progresso=centralismo), mas a revolta de Solis era uma alternativa à ortodoxia e uma rutura com este sofisma. Neste caso, a narrativa centralista alimenta o nacionalismo pancastelhanista do espanholismo, e vice-versa.

Isto não é mais que um exemplo inacabado de como a história da Galiza pode ser aprendida e, ao mesmo tempo, como a narrativa histórica espanhola pode ser analisada, ou mesmo deconstruída, de um ponto de vista crítico.

Acho que o ensino galego deve evitar imitar o castelhano e deixar de aprender uma série de factos que giram mais ou menos em torno duma narrativa convergente com a castelhana, para fazer uma coisa mais proveitosa.

Acho que o ensino galego deve evitar imitar o castelhano e deixar de aprender uma série de factos que giram mais ou menos em torno duma narrativa convergente com a castelhana, para fazer uma coisa mais proveitosa.

As e os docentes sabem que há umas habilidades de pensamento de ordem superior (HOTS, em inglês, High Order Thinking Skills) e outras de ordem inferior (LOTS, Low Order Thinking Skills). As primeiras são as que permitem criar, avaliar, analisar e realizar tarefas complexas com o conhecimento que se está a adquirir. As segundas são as mais simples, as que, lamentavelmente, mais frequentemente encontramos nas nossas aulas, ou seja, memorizar ou lembrar.

A história é aprendida frequentemente com LOTS, porque o que interessa é que as crianças aprendam uma narrativa que apoia um enquadramento ideológico determinado, fugindo do análisis crítico. Não obstante, um enfoque crítico deve basear-se nas HOTS, as habilidades superiores.

Acho que a história galega deve ser aprendida, primeiro, conhecendo os factos, e depois, analisando estos factos em relação a narrativa herdada.

Por exemplo, temos a narrativa do poder imperial castelhano através dos Pactos de família dos Bourbons do século XVIII (a aliança político-militar de França, Castela e Parma). Sem dúvida, é uma questão muito relevante para a história de Europa e América. Mas, na Galiza, as consequências económicas foram muito graves, por não falar da invasão do norte de Portugal em 1762. Um análisis da situação económica da Galiza nesse século tem um saldo negativo (apesar de algumas zonas, como Ferrol, lhe devam o seu desenvolvimento), porque os confrontos com os ingleses afectaram gravemente o comércio galego. O contraste entre os factos e a narrativa talvez leve a conclusão de que os interesses da Galiza não convergem com os de Castela, e ainda menos com os dos Bourbons. Mas para chegar a essa conclusão, os factos devem ser analisados e avaliados, e não só memorizados para responder a um exame.

Acho que a história da Galiza no ensino não deve ser aprendida simplesmente como uma narrativa alternativa em paralelo à castelhana, como se fosse uma versão atualizada, e local, da historiografia «nacional» herdada. Deve ser uma coisa mais que isso, deve ser uma oportunidade para compreender verdadeiramente, com toda a honestidade possível, a situação duma Galiza que foi um reino, depois um reino integrado no reino de Castela no passado, e duma Galiza integrada no Estado espanhol de hoje, com as suas coisas boas e más, com os seus sofrimentos e contributos, com as suas ilusões e os seus desencantos.

A história não é uma coleção de feitos, senão a interpretação inteligente desses feitos. O limite é a veracidade, mas pode haver muitas interpretações, além duma narrativa única. Isto é o fundamento no que está baseado o pensamento crítico aplicado à história das ideias e, em minha opinião, o papel imprescindível que deve desempenhar o conhecimento da história da Galiza.

Máis de Carlos Segade