Futebol, política e nacionalismo

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Por Antom Fente Parada

Recentemente a presidenta da Comunidade de Madrid, Esperanza Aguirre, do Partido Popular (PP) tentou acochar os recortes em educação que lhe custaram mais uma greve [1], o alto deficit da sua comunidade [2] ou o escándalo de Bankia [3] recorrendo ao futebol.

Concretamente despachou-se com gosto sobre a necessidade de celebrar a final da Copa do Rei entre o Barcelona e o Bilbao a porta fechada se se ía assobiar o hino nacional [4] e no mesmo sentido iam as instruções que impediriam o acesso ao estádio de qualquer bandeira que não for a espanhola ou as reconhecidas legalmente [5]. Mais e mais ataques à capacidade de raciocínio da cidadania como as últimas declarações do presidente da Junta da Galiza [6]  Coma sempre, todólogos do mais diverso faziam apologia do nacionalismo espanhol enquanto demandavam que não se misturasse futebol e política.

Perante tal cúmulo de impropérios, meias verdades e cinismo espanholista conviria fazer alguns breves apontamentos de história, para que o leitor poda fazer-se ideia de até onde chega a impostura política e mediática dos nossos dias.

Antes de entrar em matéria queremos lembrar que Rodrigo Rato deveria ser processado como um dos máximos responsáveis da crise económica e social que estamos padecendo. E não nos referimos apenas ao caso de Bankia ou a que foi um dos principais impulsores do boom da construção como ministro de economia de Aznar (PP), mas também ao seu papel no FMI. Em fevereiro de 2011 deu-se a conhecer o informe intitulado “Actuação do FMI na fase prévia da crise económica financeira: a supervisão do FMI em 2004-2007”. O devandito informe foi realizado pela Oficina de Avaliação Independente do próprio FMI e que se encarrega de fazer as tarefas de auditoria. Pronto. No momento em que o informe aparece o director gerente do FMI era Dominique Strauss-Kahn [7], embora o trabalho faz referência a quem mandava no organismo previamente: Rodrigo Rato.

Em 54 fólios os auditores entendem que durante esses anos, onde nem se previu nem se atenuou a crise, interactuaram quatro factores que explicam a responsabilidade de Rato não apenas na crise do Estado espanhol, mas também na crise mundial. A saber: deficiências analíticas, obstáculos organizativos, problemas de governo interno (o que os ultraliberais denominam “governança” ou “management“), e limitações políticas. O resultado final destes quatro factores, com incentivos e castigos para evitar qualquer desvirtuação da ortodoxia económica ultraliberal, conflui com o que Paul Krugman tem apontado sobre esta Grande Recessão: os economistas confundiram a beleza, revestida de matemáticas de aspecto imponente, com a verdade. A causa imediata do erro da profissão foi querer fazer uma teologia intelectualmente elegante (ao modo do marxismo estalinista) que o abrangesse tudo e que, aliás, oferecera a oportunidade aos economistas de gabar-se dos seus pincha-carneiros matemáticos, num ridículo comparável ao dos filósofos pitagóricos.

Futebol, política e nacionalismo espanhol

São não poucos os casos  em que resulta manifestamente clara a relação do desporto e a política, relação que no Estado espanhol é especialmente clara no futebol por ser o desporto maioritário entre a cidadania e porque contribui como poucos elementos à configuração da “unidad de destino en lo universal” que segue a ser a nação espanhola para as elites do Reino de Espanha.

No mundial de 1978 o regime de Videla aproveitou a organização da efeméride, que acabou com a vitória na final da Argentina de Mário Kempes sobre Holanda de Johan Cruyff (que não jogou junto a outros companheiros aquele mundial em protesto pelo regime de Videla [8]), como um instrumento de propaganda semelhante às Olimpíadas que o negro Jesse Owem [9] lhe escaralhara a Adolf Hitler e o NSDAP. Por certo, não foi melhor o trato que o corredor recebeu nos EUA dito seja de passagem.

Outra anedota não menos célebre é a protagonizada por Benito Mussolini e a seleção italiana. Sucedeu em 1934, também num mundial. Desta volta o partido celebra-se no estádio “Partido Nacional Fascista” e os árbitros começam o partido com o saúdo fascista. No palco, um radiante Mussolini recebe vítores como Duce dos funcionários do Partido Fascista que ateigam o estádio. A mensagem transmitida ao corpo técnico e ao plantel é clara: “Vencer ou morrer”. Se os italianos perdiam a final contra Checoslováquia, o melhor combinado do momento esperava-lhe a morte. Nada nem ninguém podia impedir o emprego do futebol como instrumento de propaganda da superioridade do fascismo.

E assim chegamos até o Estado espanhol. Os primeiros registos do futebol no Estado espanhol vêm de 1872, quando os mineiros británicos instalados em Huelva inserem o desporto. Em 1915 começa a jogar amistosos a “Seleção Norte”, vindo a tradição do futebol de Donosti na última década do século XIX. Após a sublevação fascista do 18 de julho de 1936, por vontade do lehendakari José António Aguirre, transforma-se na Seleção de Euskadi para recaudar fundos para a causa republicana e no mesmo intre em que se conformava um estado soberano em Euskal Herria. De facto, Euskadi era o Bilbao junto com jogadores bascos doutros clubes que a guerra surpreendera em território republicano. Do Bilbao fora também  o jogador Rafael Moreno Aranzadi, “Pichichi” (1892-1922), interior esquerdo.

Os clubes que encarnaram dentro e fora dos terrenos de jogo a democracia da II República espanhola foram o Barcelona e o Bilbao, precisamente os clubes que agora jogam a final da Copa do Rei e que o espanholismo dos herdeiros da ditadura franquista situam no seu ponto de mira. A seleção de Euskadi começou a sua epopeia na França, jogando contra o Racing de Paris (0-3) ao tempo que a Legião Condor bombardeava Guernika e contra o Olympique de Marselha (1-5). Daí passaram-se a Checoslováquia onde jogaram contra o Praga o 30 de maio de 1937 e contra a seleção desse Estado, a única que derrotou na gira europeia a Euskadi (3-2) e que fora finalista no mundial de Itália de 1934. Daí a equipa passou a Polónia onde derrotou ao Katowice o 8 de junho de 1937 e não pudo confrontar-se em Varsóvia por ações da extrema direita.

De Polónia Euskadi passou a URSS onde teve um recebimento apoteótico e jogou com combinados de repúblicas como Georgia e com muitos dos clubes da URSS. Nesse estado tiveram notícias da caída de Bilbo e passaram-se a Noruega e Dinamarca (onde ganharam 0-11). Daí a equipa Euskadi continuou a gira desde França até México onde jogou a Liga Maior de 1938-1939, onde com uma soa derrota e um empate ficou em segundo lugar. Em Argentina a FIFA declarou os jogadores de Euskadi em rebeldia, ao estarem exilados, e ameaçou-nos com a inabilitação definitiva. A fim da II República espanhola (abril 1939) e da II Grande Guerra (1939-1945) remataram com a equipa, mas a filosofia do Bilbao de contar com apenas jogadores bascos segue intacta e é um caso único no Estado espanhol.

A epopeia do Euskadi, quem o ia dizer, inspirou o emprego do futebol como arma de propaganda para o fascismo de Franco. Cara finais de 1938 fundam o semanário Marca, em que se recolhem os princípios ideológicos e organizativos aplicáveis ao desporto em geral e com especial fincapé no futebol. Hoje o Marca segue a ser um jornal desportivo com uma carga ideológica – e política já que logo- muito importante por mais que tente apresentar-se com neutralidade. Em Marca escrevia um dos autores do hino falangista Cara el Sol, Miquelarena, incidindo sem rubor na necessidade de adaptar o futebol aos novos piares do Estado fascista. Para Miquelarena durante a II República espanhola “el fútbol había sido una orgía roja de las más pequeñas pasiones regionales y de las más viles”. Futebol, política e nacionalismo espanhol junguidos da mão.

Durante o franquismo promocionou-se a seleção espanhola, seguindo o exemplo do Euskadi, e ocupou dentro dos clubes um lugar central o Real Madrid, de acordo com o centralismo do novo estado. De facto, o Real Madrid cumpriu o papel de embaixador do regime e dominou o mundo do futebol entre 1956 e 1960 ao tempo que o fascismo espanhol superava o isolacionismo internacional como “centinela de Occidente”. Quanto a seleção espanhola é de prever que com o galho da iminente Eurocopa nos volvam falar da “fúria espanhola”, que não é outra cousa que um decalco do apodo ainda empregado de “leões” que ganharam os jogadores do Bilbao, e núcleo da seleção Euskadi, pelo seu jogo impetuoso durante a década de 30 [10].

Espero então ter contribuído a dar uma útil vacina a próxima vez que alguém assalte ao leitor com que “não se pode misturar futebol e política”, máxime numa competição que recebe o nome de Copa do Rei e que vai indubitavelmente associada com a monarquia [11].

 

Notas ao texto

[1] “Sindicatos hacen un llamamiento a secundar en Madrid la huelga de Educación, que afecta a casi un millón de alumnos” em Que!: http://www.que.es/madrid/201205211705-sindicatos-hacen-llamamiento-secundar-madrid-epi.html

[2] “El déficit de la Comunidad de Madrid en 2011 duplicó el anunciado” em CincoDías: http://www.cincodias.com/articulo/economia/deficit-comunidad-madrid-2011-duplico-anunciado/20120518cdscdseco_8/

[3] “Bankia insiste en que no devolverá los 19.000 millones al Estado” em Público.es: http://www.publico.es/espana/434704/bankia-insiste-en-que-no-devolvera-los-19-000-millones-al-estado

[4] “Esperanza Aguirre pide suspender la final de Copa si se pita al himno” em Marca.es: http://www.marca.com/2012/05/22/futbol/copa_rey/1337674847.html?a=7801c151064f9a096451c44d76e68b30&t=1338243293

[5] “Órdenes sin precedentes a la policía: Ni banderas republicanas ni de ultraderecha, ni senyeras esteladas, ni elefantes, ni Urdangarín, registros de mochilas y cacheos en el estadio” em El Confidencial: http://www.elconfidencialdigital.com/seguridad/074960/ordenes-sin-precedentes-a-la-policia-ni-banderas-republicanas-ni-de-ultraderecha-ni-senyeras-esteladas-ni-elefantes-ni-urdangarin-registros-de-mochilas-y-cacheos-en-el-estadio

[6] “Feijóo sostiene que “darle la comida y hacer la cama” a un paciente “no es Sanidad” em EuropaPress: http://www.europapress.es/galicia/noticia-feijoo-sostiene-darle-comida-hacer-cama-paciente-no-sanidad-20120527131510.html

[7] Ignacio Ramonet (2011): “Unha esquerda descarriada” em http://revoltairmandinha.blogspot.com.es/2011/07/unha-esquerda-descarriada.html

[8] http://es.wikipedia.org/wiki/Johan_Cruyff#Con_la_selecci.C3.B3n_nacional

[9] http://gl.wikipedia.org/wiki/Jesse_Owens

[10] Para a segunda parte do artigo foi-me de especial ajuda o artigo de Ramón Chao publicado no número 199 de Le Monde Diplomatique en español e intitulado “La gesta de la Selección de Euskadi” (página 27).

[11] Um outro exemplo de futebol, política e nacionalismo espanhol é o seguinte vídeo que pretende vender a ideologia espanholista sob a cobertura da “neutralidade” da nação espanhola perante o independentismo basco e catalão: http://www.youtube.com/watch?v=DT8VqD3E0Nk&feature=youtu.be. Também a tentativa da TVE, canle pública sufragada com os quartos de todos os cidadãos do Estado espanhol -também os que somos independentistas-, de ocultar os assobios ao hino de Espanha: http://ecodiario.eleconomista.es/futbol/noticias/3995706/05/12/8/Video-TVE-trata-de-ocultar-la-pitada-al-himno-en-la-Final-de-Copa-del-Rey-.html

 

(*) Publicado também no blogue A Revolta entre a Mocidade.

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