Atualidade de Ernesto Guerra da Cal na Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós

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Por Joám Manuel Araújo

Com data de Abril de 2011, segundo o cólofon, publicou-se Almanaques e outros dispersos, último livro por agora da coleção da Edição Critica da Obra de Eça de Queirós1. Este empreendimento cultural principiou em 1992 e, completadas já quase duas décadas, com este volume está já próximo a alcançar a metade dos previstos no plano de edição proposto, em que se contemplam trabalhos de ficção e de não ficção. Entre os de ficção diferenciam-se por sua vez produtos Não-póstumos (quer dizer: acabados e publicados em vida do autor, e por ele revistos), com 8 volumes, de que se levam publicados 3; e Semi-póstumos e Póstumos (não autorizados em vida, ou só em parte, pelo escritor) com mais 9, de que se editaram 4. A produção queirosiana de não ficção classifica-se por sua vez em Textos de Imprensa (de que se anunciam 7 volumes, 4 deles já editados), Epistolografia (2 volumes, com um editado), Narrativas de viagens (1 só volume, ainda pendente), Vária (um único volume, editado, objeto do presente comentário) e Traduções (2 volumes, 1 deles editado). Um projeto, pois, de 30 volumes no total, de que com este que aqui se comenta saíram para o mercado 14. Todos os já publicados foram preparados por uma equipa de especialistas de universidades de vários países (Portugal, Brasil, França, Inglaterra, Catalunha) e caracterizam-se pelo rigor na pesquisa, e pela reconstrução com a maior fidelidade da produção de Eça de Queirós.

Almanaques e outros dispersos é pois o volume número 14 desta série, e o único programado para a “Vária”. Inclui 26 textos, publicados a maioria deles em vida do produtor português, mas também inéditos. Trata-se de um trabalho não fácil, pois como bem assinala o Professor Carlos Reis em texto prefacial, muitos destes escritos encontravam-se (p. 12) “escondidos, perdidos ou esquecidos por diversos locais e publicações, [e] eles exigem do editor (que vive frequentemente a angustiante intuição de que algum outro fugidio texto pode estar a escapar-lhe…) uma concentrada atenção e um conhecimento muito minucioso desses lugares recônditos onde se ocultam pequenas jóias ou filões ignorados”.

O trabalho de edição foi encomendado a Irene Fialho, pesquisadora em universidades de Lisboa e Coimbra, especialista em Eça de Queirós, que nesta mesma coleção já participou na edição crítica de Alves & Cia (1994, com Luiz Fagundes Duarte) e informa-se que tem em preparação as de O Conde de Abranhos e Correspondência de Fradique Mendes (com Carlos Reis e Maria João Simões), entre outros livros e investigações respeitantes a Eça de Queirós, já editados ou em andamento.

Nas páginas 15-86 Irene Fialho elabora uma “Introdução”, em que esclarece a gênese destes textos. Informa da sua fortuna e de como foram transmitidos em edições precedentes. Estuda cada narrativa com pormenor, oferecendo informações preciosas, precisas e pertinentes para entender e compreender a posição que ocupa na produção queirosiana: algumas, como “Um gênio que era um santo” ou a “Nota” que Eça de Queirós redigiu para a segunda edição de O Crime do Padre Amaro são bem conhecidas; mas entre os escritos selecionados encontram-se (p. 21) “quatro deles inéditos em livro” para além de “a maior parte dos éditos pouco conhecida do público”, segundo esclarece. Dedica as duas últimas páginas (85 e 86) para assinalar os critérios de edição. E desde a página 89 oferece-se o texto crítico dessas narrativas, indicando em cada uma as edições prévias que julga de referenciais, e em cada página numera as linhas de 5 em 5, o que facilita a identificação e a consulta das notas de rodapé em que, generosamente, e com profusão de dados, acrescenta informações sobre as diferenças nas edições prévias, e/ou justifica a fixação que ela faz agora dos textos. Uma fixação que, desde já, se terá de considerar de definitiva.

A centralidade de Ernesto da Cal.

Nos 14 volumes editados desta série são uma referência central os trabalhos de Ernesto Guerra da Cal sobre Eça de Queirós. Irene Fialho ampara-se em três deles: no estudo Língua e Estilo de Eça de Queirós (1954) no repositório da Bibliografia Queirociana (especialmente no primeiro dos seus 6 volumes, de 1975) e num artigo publicado na Revista da Universidade de Coimbra2, instituição que editou todos estes contributos de Ernesto da Cal.

Entre as várias informações desses estudos de Ernesto da Cal fornecidas por Irene Fialho neste volume, vale a pena destacar três para confirmar a sua atualidade:

  1. Salienta e assume (pp. 21 e seguintes) a análise estilística de Da Cal para atribuir a Eça de Queirós o texto “Palavras sobre o Jornalismo Constitucional”, publicado em 1870 no número 7 de A República –Jornal da democracia portuguesa, sem a identificação do autor.

  2. Oferece grande destaque (pp. 36 e seguintes) para o artigo publicado por Ernesto da Cal, em 1992, na Revista da Universidade de Coimbra sobre “Testamento de Mecenas”. Irene Fialho afirma (p. 36n): “Neste ensaio fundamental Guerra da Cal fez um estudo completo e minucioso de tudo o que se relaciona com a crónica gorada, incluindo notas sobre cada uma das personalidades citadas no texto que originou a resposta de Eça”. Eça de Queirós tinha começado um artigo para publicar na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, com o intuito de agradecer uma generosa doação num testamento, que depois se confirmou ser um embuste condizente à data do 1 de Abril e, quando assim o verificou, desistiu de continuar com aquele trabalho. Ernesto da Cal encontrou o autógrafo, no Brasil, estudou-o, e em pesquisa que esclarece com pormenor nesse trabalho, informa das circunstâncias em que fora redigido aquele gorado contributo jornalístico de Eça de Queirós.

  3. Ao apresentar “À Duse” (pp. 82-83), publicado numa brochura de homenagem à cantora lírica Eleonora Duse no ano 1898, Irene Fialho coincide no relevo deste texto curto de Eça de Queirós, recuperado por Ernesto da Cal no estudo da língua e o estilo de Eça de Queirós. Esse texto de Eça consiste numas poucas linhas, apenas 10 na versão que oferece este volume da edição crítica na p. 331. Eram linhas esquecidas quando em 1954 a Universidade de Coimbra publicou a primeira edição do estudo de Da Cal, mas linhas que Da Cal julga de grande interesse estético, em que se alicerça para reivindicar como o trabalho literário de Eça de Queirós, apesar da sua “enganosa impressão de algo espontâneo, simples e naturalmente fácil” na verdade “esconde uma laboriosa complexidade, e é o resultado de um esforço de criação férreo e angustioso”. Poucas linhas que, de serem esquecidas durante décadas, e após a sua recuperação por parte de Ernesto da Cal, são agora assinaladas como um texto canônico e referencial, o que confirma o acerto de Da Cal ao recuperar e frisar o interesse desse texto3.

São muitas outras as referências a trabalhos de Ernesto da Cal que se encontram neste volume. Ficamos por aqui, apenas para pôr em destaque como, quando estamos já muito próximos da comemoração do centenário do seu nascimento (Ferrol, 19 de Dezembro de 1911), este especialista galego continua como referência central nos estudos queirosianos. Trabalhos dele publicados no longínquo 1954 (há mais de meio século!), fruto da sua pesquisa, mantêm o seu valor e o seu vigor, o que prova o muito valioso do seu método de trabalho e da maneira como o aplicou ao seu objeto de estudo, neste caso a produção queirosiana. Para essa produção ele reivindicava uma edição crítica já desde a década de 1940, do teor da que se está a preparar e a publicar justamente nestas duas últimas décadas pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, neste ambicioso projeto internacional. Um projeto que, por certo, apadrinhou Ernesto da Cal em 1986 (apesar de chegar ao mercado só em 1992) e que lidera o Professor Doutor Carlos Reis, quem tantas vezes se tem reivindicado com orgulho, em público e em privado, de discípulo de Ernesto da Cal.

Conclusão.

Como nos 13 volumes precedentes desta preciosa coleção, estamos perante um trabalho exemplar e exemplarizante, realizado com rigor e com o maior respeito para o produtor, para o leitor, e para a cultura portuguesa, que tem nesta edição crítica um produto de luxo, arvorado com a maior exigência e de que bem se pode orgulhar.

Pouco a pouco, e graças ao trabalho de uma equipa internacional de especialistas, está a ser recuperado um Eça de Queirós mais autêntico, mais verdadeiro, limpo das intromissões que outras mãos –da família, amizades e editores anteriores– introduziram nos seus textos por prejuízos por vezes, e por outras diversas considerações (mesmo para “melhorar” o que ele tinha deixado sem revisar). Deparamos assim com um Eça de Queirós em parte novo, fruto da pesquisa rigorosa, que vai às fontes originais e compara com paciência, com minúcia, com rigor, para fazer emergir o que estava oculto e/ou mascarado, propositadamente ou não.

Esta edição crítica alicerça-se na dedicação, de décadas, de Ernesto Guerra da Cal, em que este pesquisador se ocupou de toda a produção de Eça de Queirós: das suas grandes narrativas (A Relíquia, Os Maias, O Primo Basílio, O Crime do Padre Amaro…), mas também dos contos, textos jornalísticos, epistolários e outros, mesmo profissionais, e entre eles alguns de especial dificuldade como evidencia este volume de “Vária”. Por esse imenso trabalho que dedicou a Eça de Queirós, disponível em milhares de páginas e em vários volumes, Ernesto da Cal é hoje figura central do Campo da Crítica da Literatura Portuguesa, posição que se lhe reconhece. E assim transparece também neste belo volume de Almanaques e outros dispersos preparado por Irene Fialho, e em muitos outros estudos publicados não só em vida dele, mas desde a sua morte (Lisboa, 28 de Julho de 1994), em que os reconhecimentos neste âmbito se sucederam, e continuam a produzir-se.

 

Notas:

1 Queirós, Eça de, (2011), Almanaques e outros dispersos, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Coleção da Edição Critica da Obra de Eça de Queirós, 365pp.+2. A edição deste volume foi preparada por Irene Fialho, e tem texto prefacial de Carlos Reis.

2 Da Cal, Ernesto Guerra, (1992), “ ‘Testamento de Mecenas’ (História do manuscrito de uma crônica póstuma de Eça de Queirós)”, Revista da Universidade de Coimbra, vol. XXXVII, pp. 369-387.

3 Não é este o texto mais breve: neste volume Irene Fialho selecionou outros ainda menores em extensão, alguns de um só parágrafo, mesmo de uma só linha, como v. gr. o que inclui (p.135) sob o título de “Um grupo célebre. Os Latidos”, datado em 1885 e que é o número 6 desta série (é este: “Cão lírico ladra à lua; cão filósofo abocanha o melhor osso”, uma colaboração de Eça de Queirós na revista A Ilustração acompanhada de enunciados do mesmo teor de Antero de Quental, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro). Irene Fialho acrescenta mesmo dedicatórias de Eça neste volume de “Vária”, textos todos eles valorizados agora de significativos e valiosos na produção do escritor.

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