Livro de Estilo. O Partido Pantera Negra

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Mumia Abu-Jamal.
Porque vós sodes prisioneiros de guerra no país do inimigo,
dumha guerra que de resto, nom tem rivais na sua injustiça, crueldade e baixeza.
Frederick Douglass no jornal abolicionista The Nord Star.

Jornalismo militante

A era das redes sociais no espaço virtual e a híper-conetividade global véu mudar radicalmente a indústria da comunicaçom quem, até este momento, estabelecera categorias sólidas sobre o papel da imprensa na sociedade e a sua organizaçom produtiva. A imprensa moderna, desde o seu nascimento no abrente da luita de classes até ao seu cimo como monopólio da produçom de informaçom; desde o seu nascimento ligada ao surgimento de novos ofícios: impressor, editor, jornalista, até a sua consolidaçom como “ciência da informaçom”, tornou-se num poder inquestionável, e o jornalista no seu representante referencial. Mas hoje, a sua legitimidade auto-referencial saltou polos ares, o novo mundo virtual e a sociedade híper-individualizada no mesmo ato de produzir convulsivamente informaçom também a consome, eliminando assim a mediaçom dos grandes grupos editores que sobrevivem graças os financiamento que lhes oferecem governos e estados em forma de subsídios, e a política de precarizaçom que estes grupos empresariais praticam com as suas trabalhadoras.

A ninguém deve estranhar portanto, que um exército de ídolos caídos, jornalistas acreditados que temem ser varridos por este tsunami, nos alertem dos perigos do amadorismo, da usurpaçom profissional, e das fake news. Também nom nos deve alertar a resiliência do jornalista mercenário, que soube apanhar a onda para continuar navegando através da corrente dos tempos. No entanto, uns e outros tenhem em comum o facto de se levantarem como umha só voz corporativa para combater o jornalismo militante, aquele que se sustém polo apoio popular e serve como expressom do mesmo e que hoje, como o fai o Galiza Livre, explora a fenda aberta pola irrupçom do mundo virtual na indústria da imprensa comercial, que tinha usurpado, em benefício do capital, os instrumentos de comunicaçom social. Da academia à tribuna do jornal comercial condena-se a prática militante do jornalismo: “O jornalismo militante, apenas é militante, nunca jornalismo”, dim-nos, como se o rigor e a veracidade informativa, assim como a responsabilidade social, recolhidos no código deontológico da profissom, fossem os princípios reitores na indústria da comunicaçom.

Mumia Abu Jamal. Um jornalista militante

Mumia Abu Jamal, o jornalista afro americano condenado à morte em 1982 polo estado de Pensilvânia, (pena comutada em 2011 como cadeia perpétua após a intensa campanha de solidariedade mundial), é reconhecido como tal pola imprensa internacional, de facto, exerceu como presidente da Associaçom de Jornalistas Negros de Philadelphia e trabalhou em vários meios de imprensa e radiofónicos da cidade. Mas a carreira jornalística de Mumia nom transita em direçom para o prémio Pulitzer, do mesmo modo que o seu rigor e autoridade inteletual nom provém da academia e a universidade mas sim do seu conhecimento íntimo da vida nas ruas, nos bairros e nos guetos negros norte-americanos que pateou a consciência com apenas 14 anos, carregando exemplares do jornal dos Pantera Negra debaixo do braço. Nom por acaso, foi nos bairros pobres da Philadelphia, a sua cidade natal, onde foi aclamado como the voice of the voiceless, a ”voz dos sem voz”. Foi também num destes bairros em que Jamal se viu involucrado num altercado enquanto conduzia o seu táxi noturno, e em que resultou morto um polícia e o próprio Mumia ferido de bala. O tribunal apenas necessitou esgrimir a militância política de Mumia no Partido Pantera Negra como prova acusatória, num processo despachado sem a mínima garantia jurídica. Mesmo assim, privado de liberdade no corredor da morte, à espera de que um funcionário qualquer do Estado assine a sua ordem de execuçom, Mumia seguiu exercendo o jornalismo através do espaço radiofónico Prision Radio com o seu programa  “Live from Death Row”, regressando às ruas que ele tanto amou através das histórias de vida dos presos com os que partilhava a vida carcerária e o assento dumha cadeira elétrica aguardando.

Mumia seguiu exercendo o jornalismo através do espaço radiofónico Prision Radio com o seu programa  “Live from Death Row”, regressando às ruas que ele tanto amou através das histórias de vida dos presos com os que partilhava a vida carcerária e o assento dumha cadeira elétrica aguardando.

Mas Mumia ganhou o reconhecimento social e internacional como jornalista, nom apenas polas suas qualidades e o conhecimento profundo do meio, mas também graças à paixom e vocaçom levadas até um extremo inimaginável para os jornalistas profissionais acreditados com o título da licenciatura debaixo do braço ou a assinatura dumha crónica na imprensa comercial, previamente autorizada polo departamento de imprensa do Ministério de Interior. Contudo, nada acerca do debate sobre a consideraçom do ofício inquieta ao jornalista afro americano, acostumado, coma nós estamos, à subestimaçom, e crescido num ambiente de segregaçom e racismo onde o cepticismo perante as falsas espectativas promovidas pola sociedade, contribui para se tornar em ferramenta política. Assim se refere ele aos anos em que, sendo ainda adolescente, trabalhava para o jornal dos Panteras Negras: “Jornalismo? A gente fala da experiência sem conhecimento, dumha postura de pura opiniom e dim que aquilo nom era jornalismo ou perguntam-me em que altura comecei fazer auténtico jornalismo. Com certeza, aquilo era verdadeiro jornalismo, tínhamos editores, redatores, maquetistas… e no partido aprendíamos acerca de todo, a tiragem superava os 250.000 exemplares, tínhamos correspondentes no estrangeiro e distribuiçom internacional”.

Efetivamente, na altura, o jornal dos Panteras Negras competia em tiragem e distribuiçom com muitas cabeceiras da imprensa comercial. Mas, como instrumento de comunicaçom social dumha comunidade oprimida, o seu formidável sucesso foi fruto do trabalho coletivo, onde as pessoas participavam de todas partes em que se divide o processo de elaboraçom do jornal: financiaçom, distribuiçom, redaçom, ediçom, constituindo toda umha escola em sim própria para milhares de militantes que, polas suas origens sociais e raciais, foram excluídos do sistema educativo. De facto, como tem referido Kathleen Cleaver, umha proeminente militante do partido, o jornal também serviu, em muitos casos, como instrumento para a alfabetizaçom nos guetos negros onde a taxa de analfabetismo era considerável na altura. Aliás, na sua concepçom estética, o diário dos panteras modificou o estilo jornalístico incorporando umha linha gráfica surpreendente e adiantada, que contribuiu para facilitar a compreensom do jornal, e era cousa comum, para quem se encarregava da distribuiçom, ficar preso numha casa de lata a ler e explicar o conteúdo do jornal a umha família inteira.

De facto, como tem referido Kathleen Cleaver, umha proeminente militante do partido, o jornal também serviu, em muitos casos, como instrumento para a alfabetizaçom nos guetos negros onde a taxa de analfabetismo era considerável na altura.

Finalmente, o jornal cumpriu o seu propósito, restaurando a funçom da imprensa como meio fundamental de participaçom da comunidade na esfera pública. Entom, nom era este o propósito original da imprensa, quando véu a florescer nos séculos XVIII e XIX sob o calor dos conflitos sociais e nacionais? Qual modelo de imprensa, portanto, fica mais próximo das origens e dos princípios canónicos do jornalismo?

O livro: O Partido Pantera Negra

O trabalho posterior como jornalista de Mumia Abu Jamal pom de manifesto a qualidade formativa do partido. A sua experiência militante ficaria plasmada de forma exemplar na obra “O Partido Pantera Negra” onde, desde o seu posicionamento privilegiado de testemunha e ao mesmo tempo de ator, constrói umha monografia sobre o partido entrelaçando, com grande naturalidade, a investigaçom documental, o relato autobiográfico, a memória histórica e a reflexom crítica, alcançando com um estilo didático e sem artifícios todos os horizontes possíveis onde o partido tivo incidência.

A estrutura do livro mostra a intençom didática assumida como um princípio; os capítulo seguem umha sequência temática que se corresponde na maior parte com umha sequência temporal, centrando-se nos aspetos mais relevantes do partido através de cada época, a começar pola tradiçom da luita armada pola liberaçom do povo negro, passando pola rápida expansom do partido, o internacionalismo, o inter-comunitarismo e o feminismo, até a guerra suja do governo através da FBI e o desmoronamento como partido no processo de cisons que lhe seguiu. O livro “O Partido Pantera Negra” é em primeiro lugar umha história rigorosa do partido, onde cada feito está documentado e contrastado fruto dum trabalho de investigaçom metódico, onde sobressai as centenas de horas de entrevistas com os protagonistas e o estudo das fontes documentais: material do partido, imprensa comercial, bibliografia, ou mesmo documentaçom interna do FBI e o seu programa COINTELPRO, destinado a exterminar o partido sob a premissa do “ todo vale ”.

O partido de Huey

Porém, esta intençom didática, que se corresponde com um estilo narrativo sóbrio e sem adornos, nom oculta a profundidade da escrita de Jamal e a complexidade narrativa dumha obra que assume muitos registos distintos sem alterar a coerência do conjunto. É um livro sobre o partido, mas também funciona como umha biografia portentosa de Huey P Newton fundador e alma do partido. Jamal compom o retrato do carismático líder entrelaçando-o com o percurso do partido, atendendo tanto a dimensom pessoal como a originalidade política e a complexidade da personagem: “De estatura pequena, apaixonado, tímido, filho dum predicador, ladrom de pouca monta, um tipo duro, um rapaz lindo, analfabeto e anos mais tarde doutor em Filosofia, e adito às drogas, Newton era um homem em extremo complexo, com um carácter que oscilava entre o brilhante e o niilista”. Do relato da experiência de Huey, Jamal transporta-nos para os temas e lugares clássicos na tradiçom cultural afro-americana, um substrato partilhado com todos os povos e culturas submetidas, mas frequentemente ignorados ou interditos pola cultura propriamente política; tal como pode ser “o medo” como dispositivo que nos situa ou bem do lado da reaçom, ou bem do lado da açom que é o seu reverso, como acontece no poema de Langstron Hugues: “Choramos entre os arranha céus como os nossos antepassados choravam em África entre as palmeiras, porque estamos sós, é de noite, e temos medo”, ou nos contos do escritor Richard Write em que o medo funciona como a passagem que antecede a revolta.

Muito do que som tem a ver com o medo”, confessa Newton, “Na rua todos eram umha ameaça potencial. Mas depois das primeiras pelejas, compreendi que eles também sangravam como eu. Quando já era adolescente, desafiava o primeiro tonto que olhava para mim de forma estranha, e andava com um pequeno machado envolto num embrulho feito de papel”. Esses anos de horror, diz-nos Abu Jamal, “ajudárom a Huey para compreender que as cousas nem sempre som o que parecem: os duros muito frequentemente som os mais covardes, o medo deve enfrentar-se, a força cede perante a força, e se alguém nom é o teu amigo, enfrenta-o”. Huey insuflaria este ar de determinaçom no partido, e o magnetismo vibrante de Huey confunde-se, no fio narrativo de Jamal, com o rápido desenvolvimento do partido como organizaçom armada, com a criaçom dum poder para-institucional que fundou escolas, comedores e centros sanitários comunitários, até chegar finalmente ao cimo do seu potencial revolucionário quando, por iniciativa do Partido Pantera Negra, se organiza em 1970, na simbólica cidade de Philadelphia, a Convençom Constituinte Popular Revolucionária, que procurava criar as bases para a redaçom dumha nova Constituiçom Norte-americana com o consenso de todas as forças emancipadoras dos EEUU.

Huey insuflaria este ar de determinaçom no partido, e o magnetismo vibrante de Huey confunde-se, no fio narrativo de Jamal, com o rápido desenvolvimento do partido como organizaçom armada, com a criaçom dum poder para-institucional que fundou escolas, comedores e centros sanitários comunitários, até chegar finalmente ao cimo do seu potencial revolucionário quando, por iniciativa do Partido Pantera Negra, se organiza em 1970, na simbólica cidade de Philadelphia, a Convençom Constituinte Popular Revolucionária, que procurava criar as bases para a redaçom dumha nova Constituiçom Norte-americana com o consenso de todas as forças emancipadoras dos EEUU.

O resultado significou um fracasso que motivou o cepticismo de Huey perante a possibilidade de constituir um processo revolucionário imediato, e a frustraçom ante a evidência dum racismo latente nas organizaçons revolucionárias brancas. “Enquanto falava, parecia-me que a gente nom estava realmente a ouvir, ou que nom lhe interessava o que eu estava a dizer. Preocupavam-se polos enunciados, nom assim polo conteúdo ideológico que possuia. Nom podia deixar de me sentir perturbado”. A partir de aqui, o Partido, como o próprio Huey, iniciariam um lento descenso para o inferno, dessangrando-se por luitas intestinas promovidas pola guerra suja do FBI que conseguiu reclutar todo um exército de infiltrados, chegando mesmo à liquidaçom física dos militantes destacados como Fred Hampton e Mark Clarke assassinados a tiros pola polícia de Chicago.

A memória histórica

A tentativa revolucionária de Philadelphia impulsada polo Partido Pantera Negra, resgatava à memória o processo constituinte de 1858, conhecido como a convençom de Chatham, e liderado polo abolicionista John Brown e a escrava fugidia Harriet Tubman, quem organizou o comboio subterrâneo para apoiar a liberaçom dos escravos ameaçados de morte após a aprovaçom da Lei de Escravos Fugidios. O projeto constituinte de Chatham prendia a faísca que anunciava o início dum processo revolucionário que procurava o levantamento armado da populaçom escrava, e a superaçom da constituiçom de 1787 fruto do consenso das elites coloniais brancas. Este exercício de memória histórica percorre o livro de Mumia Abu Jamal para além do capítulo específico dedicado aos antecedentes de rebeliom armada que precedérom à criaçom do partido dos Panteras Negras. A pegada da memória coletiva ficou impressa em cada umha das páginas até, paradoxalmente, fazer sua umha citaçom de William Faulkner, “O passado nunca morre, nem tam sequer é passado”, diz-nos o escritor norte-americano que transformou o sul escravista num território mítico através da sua obra. Mas na voz de Jamal, a cita profética adquire umha dimensom antagónica das ressonâncias bíblicas do universo faulkoniano, achegando-nos a umha percepçom bem mais compreensível para nós: “para muitos negros o passado está tam presente como o rosto que vemos no espelho quando nos miramos nele”; confirmando assim, mas também replicando do ponto de vista do colonizado, a tese do escritor norteamericano, descendente de latifundiários escravistas. Com esta declaraçom de princípios, Jamal está, ao mesmo tempo, adiantando umha linha de estudo e reflexom que servirá de fio condutor para as distintas vozes que emprega no livro: a analise do Partido sobre a condiçom colonial de exploraçom da comunidade negra nos Estados Unidos, a influência desta posiçom no ideário internacionalista dos Panteras e a importância do pensamento de Franz Fanom na formaçom de Newton.

Umha voz própria

O relato oral e a experiência pessoal das mulheres e homens do partido, e mesmo o relato autobiográfico de Abu Jamal, também som apresentados sob a ressonância constante do passado no presente. As crónicas da sua mocidade militante nos Panteras constitui aliás, um dos aspetos mais originais do livro; insertados como anexos no final de cada capítulo, Amal muda o rigor da análise e a escrita didática pola expressividade e a força narrativa em primeira pessoa, despregando altas doses de poder evocativo e sentido do humor, mas sempre com o propósito de completar um novo ponto de vista sobre o objeto do livro, em troca de erigir-se em protagonista:

A terceira avenida no Bronx era umha via importante na localidade e como tal era um dos primeiros lugares onde um tratava de vender o jornal. Para tentar vender as minhas 50 cópias, escolhi umha paragem onde o trânsito de peons era abundante porque a gente descia do comboio. Quase à mesma hora, outro jovem negro decidiu parar na populosa rua com a intençom de vender os seus jornais… Estivemos vendendo durante umha hora graças ao fluxo de pessoas que baixavam do comboio trás o assobio que anunciava cada paragem. Momentos depois, começamos a falar entre nós:

-oi, Irmao, ouve o que tem a dizer o Honorável Elijah Muhammad e deixa de seguir os demos como Marx, Lenine e outros.

Bem irmao, és tu quem devia ouvir o que tem a dizer o ministro de defesa Huey P. Newton e o Partido Pantera Negra.

Mas tu devias seguir um homem negro, irmao, e nom esses judeus.

-Nós somos revolucionários, irmao, e aprendemos dos revolucionários do mundo seja qual for a sua raça.

Estou a ver, irmao, dijo olhando e assinalando umha foto da capa do The Black Panther. -Quem é esse asiático, irmao?

É kin Il-Sung, o líder da Coreia do Norte, também é revolucionário.

Percebes o que te estou a dizer irmao? Agora falas-me do tipo este. Ele nom tem nada para dizer-nos aos negros, irmao!

Bom, mas se isto é assim, o que fai a sua foto no Muhammad Speaks?

De que me falas, homem?

Eu lia e estudava com regularidade o seu jornal, o seu desenho, as suas notícias e os seus comentários, mas duvido que ele tivesse lido algumha vez o nosso.

Comprova-o, irmao, olha na secçom de notícias internacionais.

Desconfiado, revisou as páginas até que apareceu um artigo com a foto de Kim Il-Sung. Obsevou-na, olhou para mim e sorriu.

Sim senhor, irmao, sim senhor, Hm, hmm!

E dele aprendemos a Ideia Juché, que em coreano quer dizer confiança num mesmo!”

Harlem Peace March, 1967 (© Builder Levy).

A anedota ilustra bem o fervor jornalístico do adolescente Pantera, e fica patente no próprio livro onde, nesse exercício de conversaçom com o passado que o percorre, dedica um espaço destacado para resgatar da memória as experiências da comunidade negra na criaçom de meios de comunicaçom em que reconhecer-se, como o jornal abolicionista The Nord Star, editado polo escravo fugitivo de Maryland Frederick Douglass a meados do século XIX, demostrando, deste modo, a existência dumha sólida e perdurável tradiçom de jornalismo militante.

[Este artigo foi publicado originariamente no galizalivre.com]