Doutrinação e perplexidade

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Xadrez da quaternidade

As éguas que me conduzem levaram-me tão longe quanto meu coração poderia desejar, pois as deusas guiaram-me, através de todas as cidades, pelo caminho famoso que conduz o homem que sabe. Por este caminho fui levado; pois por ele me conduziam as prudentes éguas que puxavam meu carro, e as moças indicavam o caminho. O eixo, incandescendo-se na maça — pois em ambos os lados era movido pelas rodas gigantes —, emitia sons estridentes de flauta, quando as filhas do sol, abandonando as moradas da noite, corriam à luz, rejeitando com as mãos os véus que lhes cobriam as cabeças ….

…A deusa acolheu-me afável, tomou-me a direita em sua mão e dirigiu-me a palavra nestes termos: Oh! jovem, a ti, acompanhado por aurigas imortais, a ti, conduzido por estas éguas à nossa morada, eu saúdo. Não foi um mau destino que te colocou sobre este caminho (longe das sendas mortais), mas a Justiça e o Direito. Pois deves saber tudo, tanto o coração inabalável da verdade bem redonda, como as opiniões dos mortais, em que não há certeza. Contudo, também isto aprenderás: como a diversidade das aparências deve revelar uma presença que merece ser recebida, penetrando tudo totalmente.

(Fragmento de Parménides de Eleia)

O sistema de condicionamento e propaganda consiste em reiterar e associar determinados estímulos de jeito continuado de maneira que chega um momento em que já não percebemos o que está diante mas o que se nos dixo que tínhamos que interpretar. Para uma pessoa nova, que nunca tenha sido “ressabiada” polo sistema educativo a leitura direta dos textos clássicos pode ser uma verdadeira iluminação porque, sinceramente, podem deduzir de este fragmento de Parménides de Eleia que seja o fundador da lógica ocidental?. Sem dúvida a lógica é importante mas nem é tudo neste mundo!.

Quando procurava a citação de Parménides na rede reparei em títulos como Parménides e Frege. Frege foi um importante lógico alemão do S.XIX e um dos construtores da lógica matemática moderna. Parménides passa por ser o fundador da metafísica ocidental e da lógica bivalente. Que a figura de Parménides e a sua filosofia tenha sido encaixada num relato linear para justificar o presente é parte do processo ideológico que quer oferecer um elemento de continuidade e de fundamentação de uma determinada visão da cultura ocidental. Esta perspetiva é ideológica e anti-científica porque não se atém as fatos e testemunhos reais mas procura uma sobre-interpretação que leve à extirpação dos feitos incómodos ou que não se ajustam à visão do que quer ser inoculado nas consciências. Parménides fala de uma excursão psíquica típica da experiência xamânica de todas as culturas do mundo. Neste poema descreve na primeira parte o rumo cara a Deusa, na segunda o que a Deusa lhe ensina e na terceira como a Deusa lhe avisa que o “vai enganar” e passa a descrever-lhe o “mundo em que vivemos” como uma alienante ilusão mas é importante ter em conta a frase: “Contudo, também isto aprenderás: como a diversidade das aparências deve revelar uma presença que merece ser recebida, penetrando tudo totalmente”. É óbvio que ele fala de “outra cousa” que não pode ser compreendido com categorias da lógica habitual. Mas podemos ficar com a parte intermédia, reduzir a doutrina a uma tediosa dogmática sobre o ser e não-ser e as categorias da lógica dialética prescindindo do contexto e a experiência na que tiveram origem. Para esta racionalidade acobardada o resto são adornos e retórica. Mas isto não é Logos ( a Razão) tal como era compreendida polos autores originais da filosofia. Em expressão de Heráclito:

“Por muito que caminhes não encontrarás os limites da alma: tão profundo é o seu Logos”

Justamente a perspetiva antiga é a de que a nossa razão é parte de uma Razão mais ampla, não dualista nem mecânica, parte de uma consciência viva, e se nós encontramos lógica, ciência, estruturas, padrões, relações no Universo é porque somos um Logos que se torna consciente e se busca a si mesmo, descobrindo o seu parentesco com a filiação cósmica da que procede. O assombro como princípio da filosofia em termos aristotélicos teria a ver com isto.

Para os filósofos presocráticos a matéria e o universo está vivo, há uma matéria animada. A vida do cosmos não é um processo mecânico (crença fundamental da época moderna), está animado de uma inteligência. O modelo mecanicista é a redução de uma experiência muito mais direta e básica e obedece a outra crença: a ideia de que a razão se sobrepõe à natureza e a força dentro dos seu limites. Justamente a perspetiva antiga é a de que a nossa razão é parte de uma Razão mais ampla, não dualista nem mecânica, parte de uma consciência viva, e se nós encontramos lógica, ciência, estruturas, padrões, relações no Universo é porque somos um Logos que se torna consciente e se busca a si mesmo, descobrindo o seu parentesco com a filiação cósmica da que procede. O assombro como princípio da filosofia em termos aristotélicos teria a ver com isto. Como é possível simplesmente ser, compreender, ter linguagem, contemplar a beleza e a fealdade do mundo? A maravilha da própria existência num mundo prodigioso é um milagre em si mesmo e não pode ser explicado por completo. Em expressão de Chesterton:

“Passamos de uma cousa inexplicável a outra cousa inexplicável e ao que está no meio chamamos de explicação”

Por isso somos seres (todos os seres) procedentes do mistério e não há racionalidade que poda dar conta de dito factum (também um fado em certo sentido). O tabu da sociedade moderna consiste em que não quer olhar para o lado fundamental de esse mistério que se expressa no processo da vida: nascimento, crescimento, sexualidade e morte. A dimensão numinosa da vida está aí e esses elementos formam um entrelaçamento e uma continuidade. Fazer de algum um tabu, vai em contra dos outros três elementos. Poderíamos dizer que constituem uma quaternidade por si mesmos. Sem um lugar para a morte não há maturidade possível: não há vida nem crescimento nem nascimento (nem renascimento). Novamente Heráclito:

“Como uma mesma cousa da-se em nós vivo e morto, desperto e dormido, novo e velho. Pois um , convertido, é o outro, e o outro, convertido, é um à sua vez”

“Para os que estão acordados a ordem do mundo é una e comum, enquanto que cada um dos que dormem voltam-se para os seu mundo particular”

Parménides de Eleia
Parménides de Eleia

As citações falam mais por si mesmas do que os comentários e trago-os aqui para refletir sobre uma doutrinação e condicionamento que tira a viveza e a frescura das palavras essenciais ditas há mais de 2500 anos. Simplesmente tomar contacto com algumas frases é mais relevante que interpretá-las. Internet está cheio de tópicos e tópicos que não permitem ver de novo as cousas, como se for por primeira vez.

Para acabar este pequeno texto de hoje queria lembrar ainda outro efeito da doutrinação, neste caso ligado ao pensamento de Platão. A ideia é abrir a perspetiva para uma outra orientação do que a filosofia pode ser e, polo menos, abrir dúvidas razoáveis a todo este processo histórico de cegueira coletiva. A questão fundamental é que esta visão não é algo ausente do mundo contemporâneo mas simplesmente invisível para a maioria da população por causa do processo de condicionamento, particularmente patente no apego a todo tipo de ideologias salvadoras e promotoras de um falso sentido de identidade.

Platão escreveu um diálogo na sua velhice intitulado Parménides. Nele realiza uma crítica exaustiva e demolidora da Teoria das Ideias que supostamente ele defendia. Quando o próprio Aristóteles realiza a crítica da teoria do seu mestre utiliza os argumentos que o próprio Platão usou em dito diálogo. Mas não se fala suficientemente disto e continua-se a explicar a Platão desde um suposto platonismo dualista, vulgarizado e utilizado com intenções doutrinárias e culturalistas em contra da perspetiva iniciática do próprio Platão.

Na carta VII, em que Platão escreve aos amigos de Siracusa as motivações que o levaram à ilha e os seus tratos fracassados com o tirano Dioniso o jovem, diz o filósofo:

“O que sim podo comentar a propósito de todos os que escreveram e escreverão sobre estes temas em que eu me esforço, seja que me tenham ouvido a mim ou a outros, seja que atuem como se os tivessem descoberto pola sua conta é que, quando menos o seguinte. Não é possível , ao meu parecer, polo menos, que entendam nada do assunto. Com efeito, não existe nem existirá nunca um escrito meu sobre estes temas, pois em modo algum é algo do que se poda falar como de outras matérias, senão que graças a um frequente contacto com o problema mesmo e graças à sua convivência com ele que de repente surge este saber na alma, igual que a luz que desprende de um lume que brota, alimentando-se a partir de então a si mesmo”…

“Por isso, todo homem que se esforça em assuntos dignos de esforço cuida-se muito de submetê-los à inveja e perplexidade dos homens pondo-os por escrito. Numa palavra, há que entender, em consequência, sempre que se vejam textos postos por escrito de alguém, sejam tratados de um legislador sobre as leis ou qualquer outra cousa sobre qualquer outra matéria, que para este indivíduo não eram assuntos de grande gravidade (se é que ele mesmo era uma pessoa grave), e que tais assuntos têm-nos depositados na zona mais apreçada da sua pessoa. Mas se estes assuntos que de verdade ocuparam o seu interesse estão postos por escrito, “então certamente”, não os deuses, mas os homens, “destruíram-lhe a razão”

Platão escreveu mais de quarenta diálogos. Que consequências tiramos das suas palavras? Para a maioria dos estudiosos não são inquietantes. Tal e como me dixo um conhecido tradutor de Platão ao castelhano numa ocasião, num tom irritado e indignado:

– Esse problema leva discutindo-se centos de anos e não tem uma solução. O que temos são os textos de Platão, a isso é ao que temos que ater-nos. Isso é um problema do passado.

– Não, é um problema do presente do que o senhor decidiu desentender-se. E, evidentemente, se temos os textos de Platão também deveríamos ater-nos a eles como é o caso da carta VII e outras considerações dos seus diálogos onde se alude à mesma questão.

Infelizmente muitas pessoas só estão dispostas a saber mais para defender melhor os seus preconceitos. Gostaria de dizer como isto afeta à nossa compreensão do teatro grego, a Shakespeare, a Camões,… mas fica para outro dia. Hoje foi dia de citações. Acabo com estas claras e diretas palavras de Doris Lessing:

Seria de grande ajuda descrever, polo menos, corretamente as cousas, chamá-las polo seu nome. Idealmente, o que haveria que dizer e repetir a todo rapaz durante a sua vida de estudante seria algo assim:

Estais sendo doutrinados. Ainda não temos encontrado um sistema educativo que não seja de doutrinação. É uma mágoa, mas é o melhor que podemos fazer. O que che está a ser ensinado aqui é uma amálgama dos preconceitos e escolhas contínuas desta cultura em particular. O mais pequeno vislumbre da história fara-che ver como podem ser transitórios. Estás a ser educado por pessoas que conseguiram habituar-se a um regime de pensamento já formulado polos seus predecessores. É um sistema de auto-perpetuação. Àqueles de vós que sois mais fortes e mais individualistas do que os outros, encorajaremo-los a sair e encontrar meios de educação para si próprios, cultivando o seu julgamento. Os que ficam devem lembrar-se, sempre e constantemente, que estão sendo modelados e ajustados para encaixar nas necessidades particulares e estreitas de esta sociedade concreta”.

( Doris Lessing, Introdução à 2ª edição de O caderno dourado, 1971)