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Como brasas contra a noite

Há um ano, na viagem de volta para Lisboa depois de assistir às “III jornadas das letras galego-portuguesas” organizadas pela equipa do blogue “Desperta do teu sono” em Pitões das Júnias, em terras do Barroso trasmontano, ecoou em mim a quadra do poeta Díaz Castro que dá mote a estas notas. As brasas eram as do velho tronco do carvalho que vi arder no meio da aldeia e eram também a pura celebração da vida, a vivência da continuidade do rio em nós, o clarão de sonho de uma vida comum enraizada nas leis do amor com que desta aldeia de pedra iluminamos a noite escura da humanidade que passamos.

Por segundo ano assisto a estas jornadas. Aprecio o diálogo interdisciplinar do conjunto das intervenções, traço que vou tomando por exercício que nos leve por outros caminhos no nosso estar no mundo diferentes dos que nos dá a especialização dos saberes em que vamos sendo guiados nas instituições académicas. Da palestra da Mónica O’Reilly sobre mito e identidade a partir do Leabhar Gabhála Éireann, fico com a sua reflexão sobre a autoridade e a credibilidade na historiografia e a deconstução dos mitos como instrumento de alheamento e dominação. Da do João Paredes sobre “Sobrevivências da antiga religião galaica e concomitâncias com a Europa atlântica” fico com as suas perguntas iniciais sobre o sentido da herança céltica e com o seu constante chamado para as palavras tabus que enfraquecem a nossa perceção. Agradeço também o alerta posterior de Rafa Quintia para evitarmos o etnocentrismo nas nossas análises e a pertinência de olharmos para o Atlântico sul nas nossas pesquisas comparatistas. Marcial Tenreiro trouxe-nos o conhecimento da arqueoetnologia e uma sólida exposição sobre ritos com dimensão jurídica. No painel da tarde assistimos à projeção do filme “Cemraiost’abrem”, da Mónica Baptista, filmado nas terras do Barroso, que tivemos a sorte de ouvir comentado pelo padre Fontes. O filme bem retrata essa escala do tempo das montanhas com que a alma se sente medida na aldeia de Pitões das Júnias. Depois, ouvimos a apresentação das atas das três edições anteriores das jornadas a cargo de Rafael Quintia, João Bieites e José Manuel Barbosa. No domingo, eu falei da poesia de Joana Torres e a genealogia feminina do saber encarnada na sua avó Lola, contínua e inspiradora presença na sua obra. A seguir a necessária e bem documentada intervenção, titulada “Identidade toponímica do Norte de Portugal e localização do nome da Gallaecia”, do meu muito estimado Hugo da Nóbrega Dias, a primeira pessoa que me deu a consciência do estranho nome, Norte, da região com mais nomes de lugar do estado português. E entre palestra e palestra, conversas pela aldeia ou à volta duma mesa com o excelente pão de centeio da terra e com o sempre generoso José Manuel Barbosa, a Ro Palomera, o Vítor, o Xavier, a Noa e a boa gente que nos recebeu em Pitões, a Lúcia, a Kátia, o Cascais.

Aprecio os estudos célticos na Galiza, tema central destas já quatro edições das jornadas, por várias razões: por procurar fontes e outras tradições académicas para interpretar-nos, como já fez a gente da Cova Céltica e das Irmandades da Fala, por contar a nossa história desde a geografia atlântica e marítima, ligando-nos à grande aventura dos povos do mar, e, esta mais intuitiva e pessoal, porque por eles procuro um fio que conte doutra maneira a história das mulheres galegas, que estimo não só por manterem materialmente a casa e um certo prestígio social, mas também por essa veia da busca de uma soberania espiritual e uma linguagem simbólica que não nos separe nem aos homens entre nós nem aos homens das mulheres nem a todos da nossa matriz entre a terra, o ar e a água, a busca do sentido da ligação e da casa.

Descubro por segundo ano como é necessário comunicar estas linhas de pensamento e ação com os nossos irmãos a sul. Temos em comum muitos referentes culturais, mas interpretados por duas sociedades de estados diferentes, com tradições académicas e dinâmicas cívicas em grande medida separadas, sujeitas neste momento à mesma onda de monocultura planetária obrigatória. Como também se disse durante as jornadas, parece que no relacionamento transfronteiriço sempre estamos a começar de zero, talvez porque sempre se estudaram as relações luso-galaicas ou bem por incompletas discussões sobre as origens ou bem pelo relacionamento de pessoas da cultura escrita, especialmente literatos ou filólogos. Talvez chegaríamos a diferentes conclusões se seguíssemos os caminhos dos músicos, dos artesãos ou dos operários. O estudo do Dionísio Pereira sobre a comunidade portuguesa na Galiza na primeira metade do século XX abre via nesse sentido.

Talvez esteja na hora de olharmos de outra maneira para esse complexo estado que temos ao sul, que se nos dá como exemplo de estado perfeito, exceção de tanta cousa que parece regra na Europa: a diversidade linguística, a mobilidade das fronteiras, a destruição de culturas ancestrais… Talvez esteja na hora pôr o ângulo de visão na sociedade portuguesa, nas vidas concretas dos seus cidadãos e a sua luta pela sobrevivência neste país das elites endogâmicas que tão bem retratou Eça de Queirós, ilustre minhoto. O meu olhar de galega não pode deixar de questionar a misoginia dos mitos pátrios portugueses, por exemplo. Também não posso deixar de reparar no tabu que caiu sobre o nome da Galiza, ou no estranhamento que me produz que cada vez com mais frequência ouça a identificação de Portugal como país mediterrâneo. Os estados ibéricos têm muito em comum, entre outros traços o de fazer da ignorância um controlador social.  O “muera la inteligencia” dos falangistas não foi menos real em Portugal, nem a sangria do exílio dos seus espíritos mais livres.

Na fragmentação da Galiza nem tudo ficou do mesmo lado. O nome, para começar, ficou do nosso, e o conhecimento da pluralidade do território da península ibérica. Dos anos que vivo em Portugal sinto até que ponto não poucas chaves interpretativas de referentes culturais portugueses estão na Galiza atual, não só por uma remota origem, mas pela vitalidade da sociedade galega. Muito temos a dizer sobre música, filologia, história, poesia, reflexão, intervenção cívica… E vice-versa. No ano em que morei no interior do Alentejo ganhei consciência do que deveu significar o culto do Santiago cavaleiro. Habituei-me também a conviver com versões não castelhanizadas de topónimos e antropónimos que nasceram na Galiza. Para não falar da utilidade do conhecimento do padrão linguístico criado no Portugal independente. Doutro lado, os meus já longos anos lusitanos (sic) deram-me consciência de que essa utopia da sociedade dos poetas que proclamou Pondal não é menos necessária no dia a dia de um cidadão português do que é na Galiza, não como projeção de futuro, mas como exercício de dignidade e alegria quotidiana. Tudo isso faz-me valorizar ainda mais o exercício de diálogo que fazemos na aldeia mais alta de Portugal.

João Vicente Viqueira sonhava o galego como língua de fraternidade. Isso que se chama lusofonia é, na melhor das interpretações (outras agradam-me bem menos), uma utopia de entendimento universal, mais uma, difícil se não conseguimos olhar de outra maneira para as “teias que o império teceu”, sejam as do império romano ou as do império português ou qualquer outro número de império que imponha hierarquias e fronteiras onde a vida nasce e se comunica. Diz algures Agostinho da Silva que o império foi uma desgraça para Portugal. Assim o creio. Os princípios pelos que questiono o domínio imperial romano sobre a Europa não se param perante um império que usa a língua que nasceu na Galiza. A utopia da universalidade linguística é uma questão moral, não gramatical. É bom que lembremos, para não confiar à língua o que só o coração comunica.

 

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