Ainda não chegamos à Irlanda

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“No princípio era a ilha
embora se diga
o Espírito de Deus
abraçava as águas”

(José Tolentino Mendonça, Os dias contados)

Gosto do lema “Galiza, célula de universalidade”. Creio que dá no alvo de uma das muitas dualidades que limitam a visão que os galegos têm de si próprios quando sujeitam a conceitos a vivência da cultura, definindo-se pela diferença em relação a um padrão articulado com o objetivo de servir à construção e sobrevivência de um poder político centralizado e hierárquico, por princípio desconfiado da graciosidade da vida e com necessidade de definir os seus “outros”. Todos conhecemos essas dualidades: universal/local, moderno/ancestral, masculino/feminino, racional/emotivo, lírico/épico… Depois de anos vivendo fora da Galiza, foi-se apagando em mim a necessidade diária do galeguismo como resistência à lógica estatal espanhola e foi crescendo a necessidade de entender a sua tradição para me compreender como ser humano sujeito múltiplos discursos que me identificam como alteridade, como mulher, como galega, como estrangeira. Começo a ver o galeguismo como humanismo, como profunda reflexão e ação sobre os outros da narrativa histórica institucionalizada. Poucas imagens tenho tão presentes como aquele ser humano por fazer de Castelão com a legenda “não lhe ponhais chatas à obra enquanto não se remata”. O “tu és de ti próprio soberano” do Banquete de Conjo é um desejo em frase da emancipação do indivíduo, de cada indivíduo como centro absoluto da (sua) história, não uma proclama de pitoresquismo.

O lema galeguista também me dá um outro olhar sobre essa sentimento que por vezes temos os galegos de sermos uma ilha, aquele “Galiza, tu não tens pátria/ tu vives no mundo soa” de Rosalia. Curiosamente, ou não, tenho especial afinidade com os ilhéus de qualquer lugar do planeta. Descobro em eles represtações, vivências e reflexões sobre a fraternidade e as viagens como em nenhuma tradição continental. Ninguém tenho conhecido mais obcecado com ir mais além do seu espaço, com encontrar pelo mar os irmãos perdidos. Comecei a descobrir estas outras poéticas que poetizavam sentimentos de espaço, tempo e história semelhantes aos meus no encontro com poetas açorianos no marco dos colóquios promovidos pela Associação Internacional dos Colóquios da Lusofonia. Mas também me tenho reconhecido no imaginário poético de cabo-verdianos e saotomenses. É por esse querer quebrar o isolamento que os galegos nos definimos ilha? Pode ser também que a ilha seja simplesmente o centro da soberania absoluta, a verdadeira terra inalienável. Eu, como nos versos da minha cara amiga da Ilha do Príncipe Goretti Pina,“quando posso regresso à ilha./ Quando não posso também”.

Os galegos, de vez em quando, sentimos a necessidade de embarcar na nave que nos leve à ilha de Irlanda.  Não sei o que germina na sociedade galega atual para que artistas, investigadores de vários campos e curiosos em geral deem tantos sinais de querer subir novamente à torre que lhes permita ver mais além e reinterpretar à luz do momento presente o manuscrito irlandês do século XI. Gostava de pensar que é o sinal do fim da estratégia de isolar a sociedade galega e a sua riquíssima herança cultural, estratégia justificada com a boa intenção de preservar os seus traços identitários, mas de facto dando-lhe rede internacional e moderna através da cultura e a sociedade que se definem como espanholas.  A história de Ith é muita cousa, mas também é o sinal que nos lembra que não estamos sós, que parte da nossa compreensão está fora do nosso espaço físico primeiro e conhecido, que é vital ultrapassar o muro das nossas incertezas. Eu, particularmente, gosto desta Galiza do passo adiante, da Galiza da margem da membrana da célula. Dá-me a alegria do presente e tira-me a ansiedade de definir-me identificando os outros.

O mais preocupante do isolacionismo não é a opção ortográfica ou linguística. É, fundamentalmente,  o seu conceito da Galiza como cultura ou “feito diferenciado” redutível e essencialmente identificável, perceção que tem mais a ver com a maneira de conhecer aprendida que com a necessidade de viver e a observação direta da experiência, necessariamente contínua e policêntrica. Falar da cultura galega como algo a conservar enquanto se limitam os seus referentes culturais e o acesso a uma parte da cultura académica, a criada no reintegracionismo, por esta sociedade e para esta sociedade gerada, limitando-lhe à partida a sua capacidade de dialogar com qualquer sociedade do mundo, é no mínimo contraditório. Para além de condenar a muitos que como galegos nos identificamos a diversas formas de exílio. É urgente deixar de ocultar outras vivências da cultura galega, e que seja de público e livre conhecimento o discurso e a ação que elas permitem.

O manuscrito encontrado na Irlanda que tanto poder germinador parece projetar sobre a história do presente contínuo coloca-nos ainda o exemplo da viragem que deu Murguia à narrativa histórica ao colocar-se fora das fontes documentais latinas e valer-se da tradição historiográfica vinda das Ilhas Britânicas para interpretar a história da Galiza. Abrir as comunidades de conhecimento a outras tradições críticas, a outras autoridades, também é trazer instrumentos para a sociedade agir sobre a sua realidade. Desde que cheguei a Portugal comecei a ouvir mais vozes vindas de África, especialmente dos países que foram colónias do império português. Aos poucos fui-me interessando de maneira crescente por ensaios da área dos estudos africanistas, e também livros de ficção e de poesia de autores africanos que me vão mostrando como de fazer uma narrativa comum da humanidade teríamos de procurar muitas chaves nas suas mãos. Ajudam-me a compreender, por evidentes paralelismos, fenómenos que também atingem aos galegos, como essa conceitualização do moderno e do ancestral e tantas outras conceitualizações dos outros. Ajudam-me a compreender o humano, sem buscar genealogia nos fenómenos, mas simplesmente analogias que façam possível a identificação e a cumplicidade. São conexões interpretativas diferentes que me fazem relativizar, literalmente, os meus conceitos e libertar-me de conhecimentos adquiridos que me separam dos meus semelhantes. Conhecimento que me isole e não me comunique é para mim inútil. E mau.

Nas ciências ditas sociais nada está separado. Pode ser que nas outras tampouco. Mas quanto a mim, nestas a relação tem de definir o método se não quer perder o seu real objeto: a compreensão mais plena possível do humano. O certo é que nunca podemos isolar o nosso objeto de estudo em laboratório. Faz-se história com um fim. E também linguística. Algo de muito errado há quando se diz que é a sociedade a que se engana quando as nossas teorias não funcionam.

Mas pode ser que a recorrência do manuscrito encontrado que lembra uma remota viagem à Irlanda não seja mais que essa vontade de manter tensa a corda do mistério na história de cada um e na de todos. Porque também do desejo se faz história. Com toda a gratuidade da vida, do amor, do conhecimento, seja qual for o nome disto que por nós passa, se mexe e nos transforma. Procuremos então mais manuscritos para reinventá-la. Ou escrevamo-los. É tão grande o mar…

Máis de Maria Dovigo