Xosé María Brañas e as memórias dum neno diglóssico

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Aconteceu há exatamente 40 anos, no mês de Agosto de 1975. Os guardia civiles entraram na tenda de ultramarinos dos meus pais perguntando à minha mãe se conhecia Xosé María Brañas e se o seu domicílio familiar era bem a rua Pastora 42, no segundo andar em cima da loja. Poucos dias depois, Xosé María, militante da UPG, era detido junto com outros muitos companheiros e companheiras da mesma formação em diferentes lugares da Galiza. Outras fugiram a Portugal. Na mesma operação, Moncho Reboiras era abatido pola polícia franquista. Brañas e outros três militantes ficariam em prisão até à amnistia de 1977.  Este é o contexto histórico da pequena estória que quero contar, que não é mais que uma pedaço de intra-história que ficou na memória de um rapaz, que sou eu, e que tinha seis anos quando tudo aquilo aconteceu.

Xosé María era um dos filhos da família Brañas, uns vizinhos diferentes ao resto: universitários e galeguistas. O resto dos mortais, nessa altura, éramos maioritariamente de famílias sem estudos superiores e profundamente diglóssicos.  Os Brañas eram clientes da nossa loja, conhecida como a tenda de Delfim, na paróquia de São Tomé de Freixeiro em Vigo. Como os meus pais lhe tinham muito carinho a essa família, sentiram muita pena por eles depois da detenção do filho. Dalgum jeito, o sentimento de empatia por essa boa gente venceu a desconfiança, produzida por estar perto de um ‘terrorista’. No meu caso, nem sentia pena nem desconfiança; desde mui cativo nasceu em mim o orgulho de ter um vizinho que luitou contra o franquismo.

Xosé María era um dos filhos da família Brañas, uns vizinhos diferentes ao resto: universitários e galeguistas. O resto dos mortais, nessa altura, éramos maioritariamente de famílias sem estudos superiores e profundamente diglóssicos.  Os Brañas eram clientes da nossa loja, conhecida como a tenda de Delfim, na paróquia de São Tomé de Freixeiro em Vigo. Como os meus pais lhe tinham muito carinho a essa família, sentiram muita pena por eles depois da detenção do filho. Dalgum jeito, o sentimento de empatia por essa boa gente venceu a desconfiança, produzida por estar perto de um ‘terrorista’. No meu caso, nem sentia pena nem desconfiança; desde mui cativo nasceu em mim o orgulho de ter um vizinho que luitou contra o franquismo.

O universo linguístico da tenda de Delfim era um exemplo de ortodoxia diglóssica: falava-se em castelhano com as desconhecidas e tudo se escrevia em castelhano, mesmo se o galego era a língua oral prevalecente. Eu passava muito tempo na loja ajudando aos meus pais. Quando tinha entre 14 e 15 anos (não me recordo da idade exata), decidim quebrar a diglossia e começar a escrever as notas das compras nesse galego escrito que estava a aprender no instituto: maçãs 37 pesetas, leituga 25 pesetas, etc.  Recordo-me de sentir vergonha muitas vezes, nomeadamente quando as senhoras faziam comentários ao respeito, mas também lembro a fachenda que sentia ao escrever em galego a compra dos Brañas, aqueles galeguistas que sabiam bem o que era levar o galego a todos os contextos de uso: o pai de família, Manuel Brañas Cancelo, colaborou com Isidro Parga Pondal na empresa Kaolines, enquanto que o filho mais velho, Manuel Brañas Pérez, professor de Biologia, escreveu os primeiros livros didáticos de Ciências Naturais em galego.

Ultrapassar a diglossia nos anos oitenta e começar a escrever com grafia internacional em finais dos noventa foram, para mim, duas pequenas conquistas vitais. Dous pequenos atos de heroicidade caseira que formam parte da intra-história oculta. Foi como mergulhar nas águas geladas do Atlântico: antes de mergulhar sentes receios e medos ancestrais devido à mudança brusca de temperatura, mas sabes que logo de lançares-te, devagar, vais sentir que o organismo normaliza e regula o biorritmo do corpo até voltar a dominar a nova contorna, feliz por esquecer o peso em cada braçada. Algo semelhante deveram de sentir aquelas que decidiram militar em partidos e movimentos ilegais durante o franquismo. Decisões heroicas que formam parte da História e que ajudaram, como foi o caso de Xosé María Brañas, a que outros, muito menos heroicos, déssemos pequenos passos (ou mais bem mergulhos) nas convulsas águas da vida.