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Sobre ratos, ratas e ratazanas, ou seja, sobre a nossa profunda subordinaçom ao castelhano

Quando nós, galegos, ouvimos ou lemos em galego hoje em dia a palavra rata, nom podemos evitar pensarmos num roedor, de sexo masculino ou feminino, similar aos ratos (e, como estes, da família Murídeos), mas de maior tamanho e comensal do ser humano nos esgotos, caves e armazéns das cidades, isto é, num roedor do género Rattus e, nomeadamente, das suas duas espécies europeias, Rattus rattus e R. norvegicus. Ora, nom podemos evitar pensarmos assim, mas devíamos, já que, como a seguir comprovaremos, tal interpretaçom do vocábulo rata constitui, em galego, escandaloso sinal da nossa profunda subordinaçom, lingüística e mental, ao castelhano. Com efeito, vejamos: se em galego ouvirmos ou lermos a voz leoa, a lógica interna da língua levará-nos, de modo natural, a entendermos por tal a fêmea do leom, um leom-fêmea; se ouvirmos ou lermos loba, somos levados naturalmente a evocar umha fêmea de lobo, um lobo-fêmea; se ouvirmos ou lermos, enfim, gata, nom poderemos, portanto, senom entender fêmea de gato, um gato-fêmea; entom, porque, ao ouvirmos ou lermos a palavra rata, nom costumamos entender, como inescapavelmente caberia esperar, fêmea de rato, um rato-fêmea (tipicamente, do género Mus)?!

Observemos que esta aberrante utilizaçom e interpretaçom da voz rata, no sentido de ‘roedor do género Rattus’, que se verifica hoje entre umha esmagadora maioria de utentes cultos de galego nom levanta só um problema formal ou de coerência lingüística, mas também, claramente, de natureza funcional. Assim, quando em galego quigermos referir-nos, num registo popular e, especialmente, no quadro da literatura infantil, a um rato-fêmea (em termos zoológicos, roedor, sobretodo, do género Mus), como é que o faremos, se a voz rata já está comprometida na designaçom de machos e fêmeas das espécies do género Rattus?! Nesta tessitura, de facto, nom sabemos qual é a denominaçom galega da conspícua personagem dos contos infantis que, por exemplo, em castelhano recebe o nome de mamá ratona, em inglês mummy mouse e em alemám Mama Maus! Além disso, mesmo com umha consciência lingüística galega adormentada, como a que hoje é tam habitual, esta utilizaçom aberrante de rata em enunciados como «Ensinámos os ratos e as ratas a realizarem modos de comportamento simples» (traduçom de «We taught mice and rats to perform simple behaviors» [Scientific American, 6/2014: 25]) tem de suscitar umha natural ambigüidade e perplexidade…

A causa desta aberrante e disfuncional utilizaçom em galego da voz rata radica, como acontece em milhentos outros casos, por um lado, na histórica subordinaçom social e cultural ao castelhano que a língua galego-portuguesa padece na Galiza desde o século xvi e, por outro, na inadequaçom e/ou ineficácia das medidas de regeneraçom lingüística e lexical que o movimento galeguista tem aplicado à língua desde o Ressurgimento oitocentista. Especificamente, o problema designativo enunciado deve-se, em primeiro lugar, à histórica incidência sobre o léxico galego do fenómeno degradativo da estagnaçom, ou seja, da paralisia cultural que aflige o galego-português da Galiza desde o início dos Séculos Obscuros até à atualidade e que determina que, desde entom, em galego, por causa da exclusom total ou parcial desta língua dos usos formais, nom se verifique umha efetiva criaçom de novos elementos lexicais (neologia), nem cristalizem de modo ordenado e eficaz as relaçons entre os elementos lexicais conservados desde a época medieval. Assim, em galego-português, no registo popular, nom se distingue tradicionalmente, mediante a utilizaçom de nomes vernáculos diferenciados, entre os murídeos de pequeno tamanho (como os do género Mus) e os de maior tamanho (género Rattus), aplicando-se a todos eles a denominaçom comum e antiga (atestada por escrito já no séc. xiii) de ratos (fêmeas: ratas), que é voz autóctone conservada ainda hoje em galego. No entanto, nas variedades geográficas socialmente estabilizadas do galego-português, isto é, em lusitano e em brasileiro, perante a necessidade de se diferenciar na língua culta e na língua especializada entre os murídeos de grande tamanho e o resto dos murídeos, surgiu posteriormente (no séc. xix!) a voz ratazana (como peculiar aumentativo de rato e rata), que designa particularmente as espécies do género Rattus, sem que tam conveniente diferenciaçom designativa se tenha produzido de modo idiomático e autónomo no seio da variedade galega, por causa do forte défice de usos formais que esta arrasta desde o século xvi. Ao mesmo tempo, dado que, desde o século xvi, o castelhano vem agindo na Galiza como única língua com plenitude social e cultural, ele exerce maciça suplência sobre o léxico galego, de modo que as lacunas designativas determinadas pola estagnaçom lexical som preenchidas na língua espontánea galega polos correspondentes elementos lexicais castelhanos, ditos suplentes. Por conseguinte, no galego espontáneo contemporáneo, a designaçom diferencial dos roedores murídeos de tamanho grande, do género Rattus, fai-se recorrendo ao castelhanismo suplente *rata, umha vez que em castelhano esses murídeos grandes recebem o nome de ratas, denominaçom que na língua de Castela nom se confunde com a dos ratos e ratas (= cast. ratón, ratona), e muito embora em galego essa soluçom castelhana origine, como vimos, umha crassa incoerência e umha notável disfuncionalidade expressiva.

Em segundo lugar, se, de modo incoerente e disfuncional, a esmagadora maioria dos galegos cultos utilizam hoje em galego a voz rata com o sentido de ‘roedor do género Rattus’, tal fica a dever-se, também, ao incompetente tratamento que dessa voz fam os dicionários e outros textos elaborados ou avalizados pola Real Academia Galega (rag), instituiçom que hoje orienta os usos lingüísticos de umha maioria de galegos cultos. Infelizmente, a última ediçom do dicionário da rag (2012), nom só atribui a rata o castelhanizante significado de ‘roedor do género Rattus’ (e nom o genuíno de ‘fêmea de rato’!), mas também propom como sinónimo dessa «rata» a voz lírio (sub voce ‘lirio2’), o que, sem dúvida, nengumha ajuda representa, porque lírio é voz marcadamente polissémica, que, como o próprio drag reflete, designa umha flor, um peixe e muito diversos roedores, e porque, entre esses roedores, a palavra denota, primária e principalmente, e enquanto dialetalismo, os leirons (roedores da família Glirídeos)!

Tendo-me dedicado ao estudo do léxico galego ao longo dos últimos dez anos, durante os quais publiquei sobre o tema diversos artigos e livros especializados, aceito agora gostoso o amável convite do Sermos Galiza para divulgar entre um largo público, na internet (e dando assim prosseguimento à série de artigos da minha lavra aparecidos na ediçom impressa do jornal entre março e julho de 2014), o conhecimento dos principais males que hoje afligem o sistema lexical galego e, portanto, que hoje prejudicam a personalidade e a funcionalidade da língua, na esperança de assim contribuirmos para quebrar a espiral de silêncio que até agora tem impedido o efetivo reconhecimento desta problemática. A multissecular e ainda hoje persistente subordinaçom sociocultural da Galiza a respeito de Castela reflete-se de forma inequívoca no estado de profunda degradaçom que mostra o léxico da língua espontánea atual, degradaçom que, tristemente, como veremos, o modelo lexical patrocinado polo oficialismo só muito parcial e ineficazmente combate, quando nom a reforça com as suas freqüentes atuaçons despropositadas. Frente a esta degradaçom lexical, devemos declarar que, como iremos mostrando em sucessivos artigos, e conforme a posiçom tradicional do galeguismo e da galeguística, é através da coordenaçom constante com as variedades lusitana e brasileira do galego-português que o galego poderá atingir umha plena regeneraçom, formal e funcional, do seu léxico.

Assim, no caso que aqui nos ocupa, devemos rejeitar o uso castelhanizante e disfuncional de rata com o significado de ‘roedor do género Rattus’, reservando tal palavra para designar, num registo popular, a fêmea de rato (incluindo a personagem mamai-rata dos contos infantis!), e incorporando, de harmonia com o luso-brasileiro, o neologismo ratazana para nos referirmos em galego aos murídeos do género Rattus, como Rattus rattus (a ratazana-negra ou ratazana-preta) e R. norvegicus (a ratazana-castanha). A «filosofia» aqui seguida, natural, coerente, económica, funcional e vantajosa do ponto de vista sociolingüístico, é esta: se na Galiza, em Portugal e no Brasil coincidimos em chamarmos ratos aos ratos (e queijo ao queijo de que eles gostam!), porque nom havemos de coincidir também em chamarmos ratas às ratas e ratazanas aos ratos (murídeos) do género Rattus?!

Artigo publicado originalmente no semanário Sermos Galiza

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