ao meu avô, o Vinculeiro de Loureda
Sempre se insiste no caráter atlántico do ecossistema galego, quando tradicionalmente os geógrafos, do anarquista Elisée Reclus ao próprio Otero Pedrayo, venhem insistindo em que o que carateriza à Galiza é, mais bem, a sua situaçom de ponte entre o mundo atlántico e o mediterráneo, que se aprecia mui bem na flora, onde convivem as espécies próprias da Europa húmeda com outras emblemáticas dos climas mais meridionais. Há de facto, a Galiza do carvalho e do freixo, mas também a da oliveira e a laranjeira, coexistência que nom se pode nem imaginar para o resto das naçons da Europa húmida.
Entre estas espécies mediterráneas que tam bem se adaptárom conta-se o loureiro (Laurus nobilis), que formou um bosque único na ilha de Cortegada, e cuja presença majestosa denuncia a toponímia. Eis, na comarca de Ordes, as aldeias chamadas o Loureiro nas freguseias de Barbeiros, Encrovas (que debe ser o Laurario que aparece no documento de 1032 da doaçom do bispo Nuno ao mosteiro de Soandres de numerosas vilas)[1] e Rodis; em plural, os Loureiros, em Vitre; e o abundancial, Loureda, em Leira. Também há, nas comarcas limítrofes, a formosa freguesia de Loureda, no concelho de Cessuras, onde a paisagem já muda bastante; e a do mesmo nome no concelho de Arteijo, no Vale de Loureda e à que se deve referir um cantar de cego que compilou o amigo Masús da Alta de Soandres. O primeiro destes topónimos originou o pelido homónimo, relativamente abundante em Cerzeda e que levam, entre outros, Martín Loureiro, arquiteto e vocalista de Machina. Etimologicamente supom-se que já deveu existir no latim vulgar umha forma *laurarius, vinda do clássico laurus[2].
Quanto ao apelido Loureda, derivado do topónimo, a província da Corunha concentra 75% das pessoas de todo o Estado que o levam como primeiro apelido (307 de 409), e 83,5% dos que o ostentam como segundo (318 de 381). Também dá nome ao marquesado de Loureda que, segundo informa o Joám Lopes Facal, fora instituído em 1871 em reconhecimento dos serviços prestados polo corunhês Vicente Ramón Alsina Selises à causa liberal progressista.
“O encantador palacete de Loureda, ou das Cadeas, construído en 1875, propiedade actualmente do Concello de Oleiros, garda a memoria daquel marquesado liberal e do seu arquitecto, Faustino Domínguez Coumes-Gay a quen lle debe A Coruña as Escolas Eusebio da Guarda, a reconstrución do teatro Rosalía de Castro e a igrexa neorrománica de Santo André, inaugurada en 1890 polo arcebispo de Santiago Martín de Herrera”[3].
Em Delfos a pitonisa do oráculo entrava em trance mastigando folhas dos loureiros do bosque sagrado de Apolo, prática alucinógena que nom encontra correlato na cultura tradicional galega (o loureiro é tóxico, os primeiros entomólogos usavam-no para matar os insetos que recoletavam), como sim o fai o significado protetor que se lhe atribuia em Roma. Da mesma maneira a como o pode explicar hoje qualquer paisano galego, Plínio o Velho assegurava que o loureiro “nom é atacado polo raio”, e que “mostra a sua aversom ao lume com um chasquido manifesto”[4], música hipnótica que sai das folhas ao queimá-las. Desta aversom ao lume vem-lhe o seu uso como defesa simbólica, por exemplo ao colocá-lo na noite de San Joám nas portas e janeilas da casa e das quadras, para que as meigas nom podam entrar, e também o seu valor terapéutico contra o mal de olho e outras doenças simbólicas, aplicando-o com fumaços ou fumeiros. Para proteger as colheitas do raio ou da tormenta o loureiro é espetado nas leiras entre os regos, prática que fotografou Gustav Henningsen em Ardemil, e também queimando-o para que o fume chegue ao céu onde andam os nuveiros e tronantes, como quem lança botes de fumo.
Se em Grécia coroavam o vencedor das Olimpiadas com loureiro, e em Roma aos emperadores, na Galiza punha-se o ramo de loureiro na cumeeira da casa rematada de construir bem rematado, para dar início ao alboroque que festejava o trabalho em ajuda mútua bem rematado. Também se colocavam remalhos de loureiro na entrada das tabernas, antes dos letreiros modernos, para atrir a clientela.
Estes usos rituais lo loureiro estám documentados, desde há quase 1500 anos, polos intentos da hierarquia cristiá do Reino Suevo da Galiza de erradicá-los. Assim, no capítulo LXXII dos Capitula Martini, redigidos polo Sam Martinho de Dúmio (depois do ano 562, data do I Concílio de Braga, mas em todo caso antes de 572), pode-se ler que: “Nom está permitido celebrar as perversas fesetas das calendas nem entregar-se às diversons gentis, sem cubrir as casas com loureiro ou com o verdor das árvores, pois todas estas práticas som do paganismo”[5]. Insistiu o bispo dumiense na condena da teima galaica de usar o loureiro como defesa mágica no seu famoso De correctione rusticorum, onde intentava –em vao- proibir tantas dessas práticas alheias à ortodoxia cristá que ainda hoje perduram, e perguntava-se de novo se pôr polas de loureiro (lauros ponere) “que outra cousa é senom venerar o diabo?” (quid est aliude nisi cultura diaboli?).
Assim as cousas, deveu chegar um momento em que a Igreja preferisse adaptar as tradiçons galegas aos seus próprios ritos, no entanto de luitar contra elas em vao, e começárom a apropriarem-se do loureiro, abençoado-o na igreja antes de usá-lo para as velhas práticas mágicas. Hoje, a festa dos loureiros por excelência é o Domingo de Ramos, quando as igrejas se vem invadidas polas árvores, como se estas voltassem, por um dia, a erguer um antigo nemeton, bosque sagrado das gentes dos castros. A nossa Santa Eufémia de Leira, rodeada de súpeto por um inesperado bosque, deve sentir saudades dos tempos em que andava com as ovelhas à vezeira, pola parte do linde com Portugal, antes de ser detida e torturada pola polícia do Império.
Di a minha tia Fina que de antigo a gente da vila vinha a Loureda a apanhar os seus ramalhos de loureiro para levarem a abençoar no Domingo de Ramos à igreja de Ordes, fazendo honor ao nomoe da aldeia, abundancial de loureiro. Entre nós, era o entranhável Mingos de Loureda o que mais a sério tomava a celebraçom da data, entrando numha competiçom feroz com outros freguesses de Leira a ver quem levava à igreja o loureiro mais grande, dando-se o caso de anos em que carregavam com umha árvore inteira, cortada polo pé, que nom dava entrado pola porta. A vitória nesse concurso de loureiros proporcionava glória ao vencedor e matéria de riso ao resto dos vizinhos para todo o ano, assim como algum que outro enfado por parte do crego, talvez sabedor de que, desde Martinho de Dúmio, este teimudos galegos som incorregíveis.
Atualmente conformam Loureda –dividida na fala entre a Aldeia de Riba e a de Baixo- as casas de Manolo do Mato, a de Garcia, a do Carvelhês, a de Mília, a de Mingos (desabitada), a de Israel, a de Lopes e a do Vinculeiro, dispostas por volta da Agra de Loureda. O rego de Loureda, que vai dar em Buscás ao rio Cabrom, nasce em Mercurim e move o formoso moínho de Zampanho –situado num claro onde medram os narcissos e perto dum montinho de azevedos e silvardeiras- e os dous de Loureda, o moínho de riba e o de baixo, este último alvo dum pirata do património, que lhe roubou há bastantes anos todos os aparelhos de madeira para expor na casa dum rico.
O padre Sarmiento já reparara no gosto dos campesinos galegos por terem loureiros perto das suas casas, seguramente polo seu uso culinário (“¡Canela de Celián! ¡Moscada das Molucas! ¡Fiuncho e loureiro dos ribazos de Rianxo!”, escrevera Urbano Lugrís num elógio às espécias), mas também mágico, e De la Rada y Delgado achava nisto umha sorte de influência da rominizaçom da Gallaecia:
“Todo revela que en Galicia la dominación romana estaba profundamente arraigada. Las injurias del tiempo han respetado multitud de objetos que hoy mutila la ignorancia, y así no es raro ver una casa rodeada de laureles, árboles dedicados a la dignidad imperial, con un castro por vecino, y dos o tres inscripciones medio borradas que acusan su origen romano, a pesar de hallarse en los dinteles y sillares de una pared recien construida”[6].
Só faltam em Loureda as inscripçons latinas (ainda que quem sabe que secretos se podem agochar nos cachotes de pedra incrustados nos muros das cortes ou nas pias das vacas), mas a impressionante abundáncia dos loureiros nos seus valos, emborda minguada desde a concentraçom parcelária, prolonga-se até às mesmas portas do Castro da Vitória, em cujo nome qualquer historiador decimonónico, devidamente inflamado de romanticismo, poderia imaginar umha derrota dos indígenas a maos dos romanos.
Notas:
[1] Manuel Lucas Álvarez, San Paio de Antealtares, Soandres y Toques: Tres monasterios medievales gallegos, Sada, Ediciós do Castro, 2001, pp. 219-221.
[2] Isidoro Millán González-Pardo, Toponimia el concejo de Pontedeum y cartas reales de su puebla y alfoz, Corunha, Diputación Provincial, 1987, p, 71.
[3] Xosé López Facal, Olimpio Pérez. Unha historia da Compostela moderna, Santiago de Compostela, Galaxia & Consorcio de Santiago, 2017, p. 108. A propósito, neste livro do companheiro Lopes Facal vem umha árvore genealógica de Olimpio Pérez (p. 19), o fundador do Banco de Hijos de Olimpio Pérez, mais tarde conhecido como Banco Gallego, com umha pola, a da nai, procedente da comarca de Ordes. A avoa do banqueiro fora baptiçada em Queijas no 3 de maio de 1783, filha de Andrés Liñares del Campo, de Queijas, e de Ángela López de Pallas, de Gesteda.
[4]Naturalis Historia, XV, 134-135.
[5] Capitula Martini, Cap. LXXII “De eo quo liceat kalendas observare”, “Non liceat iniquas observationes agere kalendarum et otiis vacare gentilibus neque lauru aut viriditate arborum cingere domos. Omnis haec observatio paganismi est”.
[6] Juan de Dios de la Rada y Delgado, Viaje de SS.MM. y A.A. por Castilla, León, Asturias y Galicia, verificado en el verano de 1858, Madrid, 1860, p. 573.
Publicado em Aldeias De Ordes, 26