Quem pensa a escola?

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Não se pode exercer a docência sem amor, aos alunos, à infância, à humanidade, ao saber, à disciplina que ensinamos, ao profissionalismo, ao ofício, ao trabalho bem feito, à sociedade, à nação, a qualquer imagem de comunidade… o que for, mas tem que haver algo longe, invisível, um princípio transcendente que nos endireite e nos coloque numa continuidade para além do nosso tempo. É isso o que nos dá fortaleza para colocarmo-nos no centro dessa cova remota do conhecimento que é a sala de aula de qualquer escola. Vou tecendo este pensamento enquanto recordo o último dia de aulas deste ano. Depois de os alunos saírem deixei-me ficar dentro da sala uns longos minutos. Sentei-me na secretária, desliguei o computador, olhei largamente para as romãzeiras do pátio e as suas flores intensamente vermelhas. Com a sala em silêncio ouvi ao longe as rolas a cantarem. Imaginei-as “levemente pousadas na saudade”, como diz o verso de Avilês de Taramancos. Pensar na leveza fez-me sentir com mais intensidade a dor da minha garganta irritada e a dor do ombro direito, exausto de corrigir testes e trabalhos e de preencher grelhas e escrever relatórios.

Há semanas que os professores da escola pública portuguesa mantêm uma greve às reuniões de avaliação. O foco da greve é a contagem íntegra do tempo de serviço que o governo se tinha comprometido a recuperar em novembro passado, depois de nove anos, quatro meses e dous dias de congelamento das carreiras. Há mais razões para a greve e todas passam em grande medida pelo cansaço de anos de degradação das condições de trabalho em que exercemos a nossa profissão. Aventuro-me a dizer que parece que estamos a recuperar do choque emocional que nos produziram as medidas que proletarizaram a profissão e deixaram de fora milheiros de colegas nos anos da troika e que finalmente começamos a reagir e a avaliar os resultados da catástrofe: a precariedade de milheiros de professores contratados com até vinte anos de contratos para “provisão de necessidades transitórias”, que em muitos casos mudam de escola e mesmo de região anualmente, afastados centenas de quilómetros das suas famílias, por vezes com horários incompletos; o prolongamento real do horário de trabalho pela multiplicação de tarefas que nos obrigam a ocupar o nosso tempo pessoal; o envelhecimento da classe num país de onze milhões de pessoas onde os colegas de mais de cinquenta são mais de metade do corpo docente e onde há pouco mais de trezentos professores com menos de trinta anos; a massificação, as turmas enormes, a falta de proporção entre o que se nos exige e a quantidade e heterogeneidade dos alunos. Cansados também, saturados, da burocracia, da obediência a uma instituição que há demasiado tempo deixou de ser democrática, de lidar com programas pensados por quem não dá aulas a crianças e adolescentes, da falta de respeito e estima da sociedade que suportamos nas cada vez mais frequentes atitudes de má-educação, até de acosso moral, por parte de pais e alunos.

Se calhar porque tenho memória de mulher e de galega a minha relação com a escola anda sempre entre a valorização e a desconfiança. Na escola luta-se, lutei como aluna contra uma escola que me alienava da minha cultura no meu próprio território, luto como professora que não quer ser funcionária e que quer ter responsabilidade e soberania sobre a sua profissão. Estou farta de obedecer, da ausência de crítica, da hierarquia que nos esmaga, de não ser ouvida, de não poder decidir. E de estar sempre disponível via email. Apesar de tudo a escola vale ainda pelas relações, entre colegas, entre professores e alunos, entre as sombras que assombram as nossas salas, as sombras do saber, da história ou da natureza. A sombra de quem eu era quando tinha a idade dos meus alunos, uma companhia que procuro constantemente para os compreender melhor. A sombra das minhas professoras, que evoco tentando relembrar como me despertaram o gosto por aprender. Ensinamos com a nossa identidade, com os gestos, com as emoções, com o tom de voz, com a nossa memória. De vez em quando encontro algum antigo aluno que guardou de mim ou de alguma aula que eu lhe dei uma lembrança que eu esqueci. Gosto de pensar assim a escola, como um espaço onde criamos memórias que se vão pousando irremediavelmente como o pó dos livros. É uma imagem que me ajuda a relativizar a ideia da escola atual tão eficiente e técnica, onde nunca há silêncio, e a vê-la como um espaço de relação entre gerações como poucos na sociedade, onde todos temos um papel a cumprir na vida uns dos outros, nem que seja tirar-nos das nossas inércias. Gosto também de vê-la como espaço de relação com ausentes, como quando mostro palavras que existem em todas as línguas ocidentais originárias do grego, do árabe ou do nauatle, “filosofia”, “azeite”, “chocolate”, “oxalá”, e falo de um mapa imaginário de genealogias complexas a cruzar as línguas e a história.

Pensar a escola, imaginá-la e contá-la, é um dos remédios anímicos que encontrei para sobrepor-me à frustração quotidiana. Penso na comunicação neste tempo de telemóveis e youtubers e palavras em inglês, também no ensino. Observo como apesar dos sms e o whatsapp não desapareceram os aviões de papel e os bilhetes entre os alunos a circularem clandestinamente pela sala cada primavera. Penso na oralidade e na escrita e procuro o exercício daquilo que só pode ser dito e do que só pode ser escrito. Depois de anos ensinando Espanhol como língua estrangeira, cada vez tenho dou mais importância ao ensino da fonética. Nos primeiros dias de aulas levo comigo uma caixa com letras de madeira para ensinar o alfabeto com outros fonemas. As letras circulam de mão em mão com tanto alvoroço como se fosse a primeira vez que se encontram com elas. Todos querem a letra da inicial do seu nome. Adoro esses momentos em que construo o tempo da aula só com a minha voz, essa que tenho tão cansada no fim do ano, e a dos estudantes. Há dias ouvi dum filósofo na rádio que pensar o corpo é pensar a ação. Pensei logo em mim ensinando numa sala, nos meus trinta alunos sentados, nos dias em que passamos frio e nos que passamos calor nas envelhecidas escolas portuguesas, nos horários, nas rolas que não ouvimos cantar durante o tempo da aula. Pensei também nas partes esquecidas da oratória, da construção do discurso, a memória e a ação. Pensei na democracia, na palavra pública, nos alunos que têm tanto pavor a falar à frente dos colegas. E pensei também em mim, criada em bairro operário, filha de trabalhadores de ofícios, que nem como professora deixo de pensar no meu trabalho como atividade física.

Ser estrangeira também é um remédio. Penso no ângulo único que me foi dado para conhecer as famílias, as terras diversas pelas que já passei no Algarve, no Alentejo e em Lisboa, a história de Portugal. Dizia Agostinho da Silva que a grande gesta histórica dos portugueses não tinham sido os descobrimentos, mas resistir ao centralismo castelhano. A minha experiência como professora fez-me ganhar a convicção que a maior gesta dos portugueses será sobrepor-se aos limites impostos pelas suas elites. Em Portugal aprendi a diferenciar a independência da soberania e aprendo diariamente o que a democracia é e o que não é.

Não sabemos como acabará esta greve nem como começaremos o próximo ano. A convocatória da reunião com os sindicatos feita pelo Ministério de Educação para esta semana não nos faz esperar uma mudança. Entretanto vamos resistindo ao desgaste da greve e dum ano que não acaba. Eu passo o domingo a escrever, com a necessidade e a esperança de limpar emoções, vencendo a resistência que tenho a falar da profissão que exerço. Lavo a roupa do inverno e seco-a ao ar de julho, faço doce de morangos para guardar para o tempo frio e limonada para o calor destes dias, observo o movimento do sol na minha varanda virada a norte, registo o que acontece ao mesmo tempo e teimo em encontrar uma relação, porque é assim que a natureza humana é, teimando no sentido das relações.

 

Máis de Maria Dovigo