Qual é a «norma da AGAL»?

Partilhar

Todos falamos às vezes da «norma da AGAL»: “Este livro está escrito na norma da AGAL”, “Carlos emprega a norma da AGAL”.

«Norma coraçom» e «norma coração»

Com esta expressão «norma da AGAL» estamos a referir-nos, fundamentalmente, ao uso da grafia “-çom” (por exemplo, “coraçom”), em vez da comum na ortografia internacional da nossa língua “-ção” (“coração”), à qual vai ligado o uso generalizado do til. Podemos, pois, para falarmos com mais precisão, denominar essas duas variedades gráficas como «norma coraçom» e «norma coração».

O uso da expressão «norma da AGAL» para referir-nos à «norma coraçom» é explicável porque, de feito, é fundamentalmente dentro da AGAL que essa norma se cultivou e se cultiva.

Uma interpretação errada

Mas é inexacto, segundo quero explicar, entender com isso que a «norma coraçom» é ou foi nunca a norma «oficial» da AGAL e que, pelo contrário, a «norma coração» não é oficial da associação –ou que é, pelo menos, menos oficial.

De acordo com esta interpretação –restritiva e injustificada, como intentarei logo provar–, não faltou quem quisesse exigir do conselho diretivo da AGAL que as suas comunicações de caráter institucional devam ir redigidas obrigatoriamente na «norma coraçom», ou quem intentasse obrigar os responsáveis da revista Agália a manter o uso dessa norma nas seções não assinadas individualmente, ou quem se considerasse legitimado para protestar contra o feito de que cada vez seja menor a proporção de livros que a AGAL publica em essa norma, que estaria assim discriminada.

É frequente que os que assim agem pretendam fundamentar tais exigências nos próprios estatutos da AGAL –contra toda a evidência histórica e jurídica, insisto. A passagem decisiva com que se pretende basear essa atitude no texto dos estatutos da AGAL é o artigo 2, onde diz:

Artigo 2º. A Associaçom Galega da Língua tem por objectivo fundamental conseguir umha substancial reintegraçom idiomática e cultural do galego (nomeadamente nas suas manifestaçons escritas) na área lingüística e cultural que lhe é própria: a galego-luso-africano-brasileira. Com vista a alcançar este fim geral, a Associaçom Galega da Língua propom-se, por sua vez, […] trabalhar para estabelecer no idioma galego a normativa de carácter reintegracionista, científica e independente, que cubra os diversos aspectos da língua, quer dizer, o prosódico, o ortográfico, o morfossintáctico e o lexical. Como conseqüência, difundir o conhecimento e o uso de tal normativa em colaboraçom com as Entidades de qualquer tipo que visarem um fim semelhante.

Até não falta quem parece identificar a «norma coraçom» com a “ortodóxia reintegracionista”, dando a entender assim, ao parecer, que a «norma coração» representa uma heterodóxia. (O que nos traz à mente a denominação de “heterografías lusistas” que alguns partidários da norma ILG-RAG aplicaram ao reintegracionismo em geral –incluída também a própria «norma coraçom»).

Essas pretensões, por bem intencionadas que sejam, carecem de fundamento. E será bem fazermos algo de “memória histórica” ao respeito.

Nos estatutos da AGAL

Na passagem aduzida dos estatutos da AGAL fala-se da “normativa de carácter reintegracionista, científica e independente”. A que normativa se está referindo este texto?

Há, em primeiro lugar, um princípio de índole jurídica, que é que toda norma legal deve interpretar-se sempre no sentido mais favorável para aqueles a que impõe alguma obriga.

E, em segundo lugar, já se sabe que para interpetrarmos adequadamente uma norma legal é preciso conhecermos o sentido que quiseram dar-lhe os seus redatores. Para este fim virá bem relatar aqui sumariamente algo da história desse texto e das origens da AGAL em geral.

Nas origens da AGAL

A ideia de configurar uma associação que defendesse e promovesse a unidade linguística da Galiza com o que hoje chamamos Lusofonia foi-se conformando em conversas, cartas e contatos diversos desde o ano 1979 entre diversas pessoas que naqueles anos se foram manifestando favoráveis à unificação ortográfica. Conservo ainda cópias de várias cartas em que eu propunha realizarmos esse projeto de associação (por exemplo, em carta a José Luís Rodríguez, de data 14 de março desse ano 1979: “Temos que organizar-nos, xa que a oposición fai-se forte…”; em carta a Isaac Alonso Estravis, então residente em Marid, de data 19 de maio: “teríamos, em todo caso, que organizar-nos mais os de tendencia ‘reintegracionista’, pois a reacción ‘independentista’ é forte”).

Acabamos constituindo um grupo promotor informal, e redigi então um esboço dos estatutos dessa futura associação. Depois, o meu bosquejo foi discutido, melhorado e enriquecido de diversas maneiras por outras pessoas daquele grupo, mas no substancial manteve-se a minha redação. A passagem do artigo 2º citada acima procede literalmente do meu texto (com uma pequena modificação insignificante: onde agora se diz “galego-luso-africano-brasileira” eu dizia simplesmente “luso-brasileira”, que me parecia suficiente…).

Durante a primavera de 1981 discutiu-se esse texto dos estatutos (em reuniões celebradas no Seminário Maior de Santiago, onde eu então dava classe) e concluiu-se a versão definitiva, que logo foi apresentada para aprovação legal. Como se vê, não existia ainda a AGAL (só essa comissão organizadora informal), que se constituiria legalmente no outono desse mesmo ano 1981, depois de que chegasse a aprovação oficial dos estatutos. Nem, menos, existia a Comissão Linguística, que os estatutos já previam, mas que tardaria ainda vários meses mais em organizar-se.

Quer dizer que não havia nenhuma normativa da AGAL, e a própria Comissão Linguística, uma vez constituída no ano 1982, não considerou urgente definir uma normativa própria: primeiro elaborou-se a crítica das normas ILG-RAG, e só bastante tempo depois, em 1985, se redigiu uma proposta normativa mais explícita e sistemática, com finalidade didática.

Uma normativa aberta

A que “normativa de carácter reintegracionista, científica e independente” se referia então a passagem dos estatutos em 1981?

A resposta é simplesmente o que a própria formulação diz: uma normativa reintegracionista que estivesse baseada no conhecimento científico e que fosse independente do sistema ortográfico castelhano (pois este era o problema: que a ortografia que se vinha usando na Galiza estava moldeada sobre a castelhana). A palavra “independente” não alude aí em nenhuma maneira a qualquer eventual “independência” ou autonomia da ortografia galega com respeito à luso-brasileira, cousa que nem se excluía nem se postulava, pois não era esse o problema que nos afetava.

A normativa que em todo esse tempo vinha usando-se no campo reintegracionista era a das minhas Directrices para a reintegración lingüística galego-portuguesa, publicadas em opúsculo em 1979, e adotadas também por Cavalho Calero no seu livro Problemas da língua galega, aparecido em 1981. E a essa normativa genérica, sem necessidade de citá-la expressamente, fazia referência o artigo 2º dos estatutos com a formulação de uma “normativa de carácter reintegracionista, científica e independente”.

Ora, uma caraterística das Directrices era a sua flexibilidade normativa, sem rigidez precetiva, querendo deixar sempre abertas as possiblidades futuras. Concretamente, a propósito do tema que agora nos ocupa, da adoção do til, diz-se ali o seguinte (pág. 19):

§ 51.- 1) Non será obrigatória a utilización doutros tipos de acento distintos dos dous indicados; portanto, non será prescriptivo usar o acento grave (`) nen o til (~).

2) Porén, a utilización do acento grave e do til, dado que non interfere no sistema xeral de acentuación gráfica proposto, non ficará proscrita, se efectuada en conformidade con as normas da ortografia luso-brasileira. Asi, tanto poderá escreber-se á, ás como à, às, ou irmá, irmao como irmã, irmão.

Como se vê, fica aí aberta a possibilidade de usar o til. E portanto na “normativa de carácter reintegracionista, científica e independente” que diz o artigo 2º dos estatutos da AGAL está incluída também essa possibilidade.

A resistência da inércia

Naquela época preferíamos todos usar a «norma coraçom», mas como uma praxe que entendíamos provisória, e por razões didáticas em primeiro lugar, mas sobretudo por motivos de índole prática: nem as máquinas de escrever usadas na Galiza, equipadas com o teclado espanhol, nem as imprentas dispunham do til, de maneira que parecia pouco oportuno insistir em adotá-lo.

No entanto, nunca se entendeu que ficava excluído o seu uso. Antes ao contrário, foi aumentando no seio da AGAL a consciência de que o til constituía um elemento emblemático da língua portuguesa, e que portanto não tinha muito sentido adiar indefinidamente a sua generalização no reintegracionismo. O próprio Carvalho Calero deu voz a este sentir numa entrevista na Televisão Galega pelo ano 1986 declarando que a ortografia galega deveria ser no futuro plenamente idêntica com a do restante mundo lusófono.

Uma intervenção mais concreta nesta direção foi a de Miguel Cupeiro, primeiro num congresso da AGAL e depois num escrito rigorosamente elaborado que, assinado por 39 membros da AGAL, foi apresentado à Comissão Linguística em 1989, a qual, por unanimidade, aprovou a adoçou do til nalguns casos, como irmão ou corações.

Só a inércia e a preguiça explicam que esta medida tardasse em ser seguida, e que fosse ignorada até hoje por um sector da AGAL, até o ponto de que mesmo um escrito recente da Comissão Linguística como é o O modelo lexical galego, publicado em 2012 (portanto, mais de 20 anos depois de aquela decisão), não só prescinde sistematicamente dessas formas na exposição (e assim usa condiçons, consideraçons, manifestaçons…), mas, o que é ainda mais grave, esquece incluir entre as formas lexicais propostas como normativas as variantes com til anteriormente aprovadas, como irmão ou coirmão ou zángão, e só recolhe as variantes sem til irmao, coirmao, zángao.

De resto, a resposta restritiva que então deu a Comissão Linguística, qualquer que seja o juízo que hoje nos mereça, devia entender-se, como são todos os seus ditames, como uma simples sugestão de índole técnica, que terá a força que se queira reconhecer aos seus argumentos, e não podia de nenhuma maneira significar que a «norma coração» estivesse excluída do uso oficial da AGAL.

A caminho do futuro

Nos anos posteriores a chegada de Internet e o processo de globalização cultural criou uma nova perspectiva também neste campo e foi tornando cada vez mais anacrónica a resistência de alguns à adoção do til.

Hoje a ausência de til dificilmente pode justificar-se num sistema ortográfico da língua portuguesa, e de pouca utilidade é dizermos que reflete melhor o nosso fonetismo ou que se justifica no sistema gráfico-fónico da nossa língua medieval.

Acontece que mesmo gente pouco informada sobre o português considera mais razoável escrever não do que nom, visto que esta forma nos afasta da dimensão internacional da língua, A possível utilidade pedagógica que a «norma coraçom» podia ter noutro tempo, hoje dificlmente é operante; antes ao contrário, com frequência é contraproducente, pois muitos que estariam dispostos a usar um sistema ortográfico internacional, resistem-se a adotar uma praxe ortográfica a que vêem escassas vantagens e que sabem não tem futuro.

Concluindo. Do uso institucional e “oficial” da AGAL fazem parte tanto a «norma coraçom» (que deve entender-se como uma espécie de “normativa reintegracionista de mínimos”) como a «norma coração».

O conselho diretivo e os diversos organismos dependentes da AGAL não só não tem nenhuma restrição estatutária para o uso institucional e oficial da «norma coração», mas, pelo contrário, é de toda razão que, com flexibilidade e sem nenhum género de imposição, estimulem e favoreçam a sua crescente difusão, com vistas ao futuro, na situação dramática em que a língua da Galiza se encontra.