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Tiago Alvite: “A TVG pode mudar o nosso imaginário coletivo, permitindo ver o português não como ‘outra’, mas como uma variante da ‘nossa’ própria língua”

tiago-alvite-03Tiago Alvite morou nas Canárias em miúdo e a sua avó lhe dizia que o galego era feio.

Quando vem a residir na Galiza já tem claro que este é o seu país e a sua língua o galego.

Profissional da produção televisiva advoga por recorrer aos média em português para compensar a presença maciça do castelhano nessa área.

Defende o binormativismo tanto em associações como na administração. É fã da EOI e dos aPorto.

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Tiago Alvite morou na sua infância nas Canárias e tivo como idioma primeiro o castelhano. Sendo filho de pai galego, como se vivia a Galiza na distância?

Vivia-se de maneira um bocadinho contraditória: com saudade por morar longe da terra dos meus avôs, de que tinha muitas lembranças e da que tanto ouvia falar, mas também com certo complexo de inferioridade, devido à perceção que tinha de a Galiza ser um país atrasado, no que se falava uma língua que era sinónimo de ignorância. De facto, meu pai nunca me falou em galego e minha avó, nas férias que passei na Galiza, não queria que o falasse porque dizia que era feio.

Quando chegas à Galiza para formar-te e residir, com 22 anos, qual a tua atitude para com o galego?

Durante a transição política, com a emergência das reclamações democráticas de todo o tipo, nomeadamente os direitos dos povos à sua identidade nacional, com o idioma como principal símbolo resumo dessas identidades, principalmente por influência de professores canários, vou conformando uma consciência de esquerdas e nacionalista e começo a olhar para a Galiza com esses óculos. Assim, acedo a obras como Sempre em Galiza de Castelao, Problemática nacional e colonialismo: O caso galego de Paco Rodríguez e Ramón L. Suevos, e outras obras em destaque naquela altura do nacionalismo galego. Quando chego à Galiza tenho muito claro que este é um país com língua própria, sendo o meu dever apreender e falar a língua do país que me acolhe, do mesmo jeito que se fosse a viver a Londres teria de apreender e falar o inglês.

Tiago é licenciado em jornalismo e produtor na televisão da Galiza, na qual trabalha quase ininterruptamente desde o ano 86. Que papel jogou a TVG na sociabilização do galego?

Não há qualquer dúvida de a TVG ter jogado um papel fundamental na valorização e socialização do galego (dum determinado padrão do galego, claro está). Depois da sua desaparição oficial durante o franquismo, por fim o galego visibilizava-se nos meios públicos, que se constituem num espelho em que podermos reconhecer a nós próprios como galegos e galegas. Os meios audiovisuais públicos em galego, portanto, jogam um papel estruturante para a conformação do nosso imaginário coletivo e da nossa identidade como sujeito político, numa altura na qual a reivindicação nacional e a autodeterminação surgem como reclamações legítimas dos povos e nações sem estado para garantir a sua existência.

Podermos informar a diário nos telejornais do que acontece não só no mundo, mas também na própria terra, numa altura em que a televisão constitui o principal meio de informação da população. Vermos séries de grandes audiências, localizadas na nossa terra, e produzidas com os nossos próprios meios técnicos e humanos. Assistirmos à transmissão em direto, comentadas em galego, de finais de futebol da Liga ou da Champions com índices de audiências de mais do 50 por cento, chegando-se a ultrapassar os 600.000 telespectadores. Entretermo-nos vendo o Javali Clube, com séries de desenhos animados, videoclipes de grupos musicais galegos e outros espaços de produção própria, que deixaram pegada em toda uma geração de rapazes e raparigas, muitos deles sem contato algum com o galego e que o assumem como língua deles. A rádio e a televisão da Galiza são, enfim, meios com um potencial imenso não só para receber conteúdos audiovisuais em galego, mas também para os produzir e articular uma indústria audiovisual e cultural, sendo tudo isto estruturante da nossa condição como galegas e galegos, como povo galego.

Porém, no percurso do tempo a TVG foi perdendo capacidade de influência, por razões que têm a ver com mudanças gerais da sociedade galega, mas também por outras mais específicas relativas à profunda transformação do setor audiovisual. Primeiro pela aparição das televisões privadas e temáticas, que produzem uma forte fragmentação e segmentação da audiência. Depois pela convergência tecnológica e a aparição das grandes plataformas digitais, que determinam novas maneiras de gerir, produzir e consumir os conteúdos audiovisuais. A TVG ficou muito atrasada nesse processo, agravado pelos cortes orçamentais sofridos desde 2009 com o álibi da crise económica (por volta de um terço do seu orçamento), e só hoje está a encetar a renovação digital, para a que vai precisar dum tempo de adaptação. Passada esta prova fundamental para a sua sobrevivência, ou de modo paralelo, a TVG teria de se centrar na sua oferta de programação, apostando na qualidade e reforçando aquelas caraterísticas diferenciais (relativas à defensa do próprio) que dotam à TVG e a Radio Galega dum valor acrescentado frente aos grandes grupos mediáticos com sede em Madrid.

Contudo, o peso específico da TVG no panorama audiovisual descrito, por mais recursos que se lhe puderem fornecer, vai ser sempre mais limitado do que desejaríamos. Neste senso, podermos receber as emissões televisivas e radiofónicas de Portugal, dando cumprimento ao artigo 11 da Carta Europeia de Línguas Regionais e Minoritárias e ao artigo 4 da Lei Paz Andrade, ajudaria a equilibrar um bocadinho um ecossistema comunicativo com domínio quase absoluto do Castelhano.

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Que ações e estratégias podia implementar a TVG em relação às variedades internacionais da nossa língua e em que medida julgas que podia alterar a perceção que do português tem a maioria da sociedade?

Acho que este poderia ser um desses aspetos diferencias que daria à TVG um inestimável valor acrescentado. Valorizar as variedades internacionais do galego, de maneira a facilitar podermo-nos desenvolver com naturalidade no âmbito internacional da lusofonia, tem indiscutíveis vantagens não só culturais, mas também económicas. Se houver vontade política, a TVG pode jogar neste processo um papel muito parecido ao dos seus inícios, podendo constituir um espelho através do qual mudarmos o nosso imaginário coletivo, permitindo ver o português não como outra, mas como uma variante da nossa própria língua, com a projeção internacional e a utilidade imensa que este reconhecimento lhe daria.

Há uns anos a CRTVG e a Rádio-Televisão de Portugal (RTP) assinaram uma convenção de colaboração que abrange a troca de informação e produções e o desenvolvimento de projetos conjuntos. Neste quadro, em setembro do ano 2014 a TVG e a RTP deram um passo histórico na sua colaboração com a produção e emissão em direto da Praça Maior de Ourense dum programa conjunto, o magazine “Aqui Portugal”, com atuações musicais, entrevistas e reportagens, para uma audiência potencial de 13 milhões de pessoa que constituem as populações de Portugal e a Galiza. Este formato, que teve grande sucesso, reeditou-se em 2015 de Vigo e em 2016 de Lugo.

Em junho de 2016 a CRTVG e a RTP apresentaram a sua primeira colaboração duma série de ficção de corte histórico, localizada no norte de Portugal, “Vidago Palace”, financiada com ajudas públicas da Creative Europe-MEDIA-TV Programming. E neste ano a TVG estreou correspondente no Porto com o suporte técnico da RTP.

São passos incipientes, sem dúvida, mas passos importantes num caminho em que ainda fica tudo por perscrutar, a começar por imaginar essas colaborações poderem-se realizar na norma internacional do galego. Acho que nesta senda as galegas e os galegos não temos nada a perder e temos tudo a ganhar.

Em que medida o galego Ilg-Rag tem sido fundamental para o atual mapa social e ideológico da língua galega?

Penso que numa grande medida, uma vez que se elabora de costas para o português, não levando em consideração o critério linguístico de figuras referenciais como Carvalho Calero, que advertiu de o porvir do galego estar em não se desvincular das outras formas do antigo galego-português, que se manifestam como línguas de uso extracontinental e que podem reforçar o galego, depauperado depois de quatro séculos de colonização linguística castelhana, e permitir-lhe fazer concorrência ao castelhano dentro da própria Galiza. Acho que a aprovação da Lei Paz Andrade pela unanimidade do Parlamento da Galiza, com todas as limitações que se quiser, é um reconhecimento implícito desse critério reintegracionista.

Por onde julgas que deve caminhar o ativismo linguístico para abrandar a velocidade da substituição linguística e tentar, a médio prazo, começar a inverter a situação atual?

Acho que é importante conseguirmos a implicação do conjunto do nacionalismo e do galeguismo entorno à ideia da recuperação da unidade estrutural do galego e o português. A XVI Assembleia Nacional do BNG, reunida nos dias 25 e 26 de março na Corunha, aprovou uma resolução sobre o aproveitamento internacional da nossa língua, assumindo como próprio o objetivo reintegracionista, e apostando em incrementar as relações com os países lusófonos. A II Assembleia Nacional de Cerna, reunida no passado 21 de maio, aprovou dar oficialidade à norma internacional do galego, seguindo o modelo norueguês de dupla normativa. Seriam bons posicionamentos parecidos doutras organizações do âmbito do nacionalismo político. E ainda seria muito bom conseguirmos o apoio do sindicalismo nacionalista representado pela CIG, que é a primeira força sindical em filiação na Galiza, com quase setenta mil afiliados e afiliadas, e com presença em todo o território galego.

E ainda creio que se devem atingir consensos que ultrapassem o âmbito do nacionalismo, porque as relações com a língua não só têm a ver com questões identitárias, mas também económicas. Imaginemos as possibilidades económicas que se nos poderiam abrir, com a consequente geração de riqueza e bem-estar da população galega, se disponibilizássemos dumas comunicações simbólicas que nos permitissem desenvolver-nos com naturalidade no âmbito da lusofonia, acrescentadas com umas comunicações físicas de qualidade com o norte de Portugal, através dos caminhos de ferro. Se eu fosse o alcaide de Vigo estaria mais preocupado do comboio ao Porto do que do AVE a Madrid, e de falar em galego mais do que em castelhano.

Contamos com conquistas importantes como a aprovação pela unanimidade do Parlamento da Galiza da assinalada Lei Paz Andrade, para o aproveitamento da língua portuguesa e os vínculos coa lusofonia, e o ingresso do Conselho da Cultura Galega na Comunidade dos Países em Língua Portuguesa em qualidade de Observador Consultivo. Porém, a Lei Paz Andrade não se está a desenvolver com a vontade política que se requer, nem no âmbito do ensino nem no dos meios audiovisuais de comunicação, e precisamos de reforçar essa vontade. Ao mesmo tempo temos de conseguir o reconhecimento oficial da norma internacional do galego, porque é a culminação lógica dos passos dados, e dele depende o porvir do galego. Qualquer apoio a conseguir nessa direção não está a mais.

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A EOI e os aPorto foram importantes na tua passagem para a estratégia internacional. Lembras como foi o processo? Que esperas da AGAL?

Eu tinha avançadas certas reflexões ao respeito, fruto da relação e do passo dado por outras pessoas, assim como do trabalho de organizações como AGAL, mas não tenho qualquer dúvida de a EOI (na qual tive o enorme privilégio e o prazer de conhecer excelentes professores, como Beatriz Bieites, Valentim Fagim ou Eduardo Maragoto) dar-me a segurança necessária para dar o passo definitivo. Também através da EOI pude conhecer os aPorto, que foram uma experiência extraordinária não só de aprendizagem do idioma, mas também de participação em atividades culturais que me permitiram reencontrar-me com o Porto do ponto de vista dum galego a sentir a língua e a cultura de Portugal não me ser alheias.

Da AGAL espero que continue a trabalhar da maneira em que o faz: com teimosia, mas com amabilidade, com pedagogia, com criatividade e com vocação de atingir, sem nenhum tipo de exclusão, todos os sectores da sociedade galega que quiserem importar-se.

Como gostarias que fosse a “fotografia linguística” da Galiza em 2040?

Gostaria que fosse a fotografia duma sociedade que se orgulha de ter o galego como língua de uso comum e plenamente consciente de pertencer a uma comunidade linguística de mais de 250 milhões de falantes espalhados em quatro continentes.

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Conhecendo Tiago Alvitetiago-alvite-01

Um sítio web: O portal da Assemblea Nacional Catalana, com toda a atenção focada no que acontecer no dia 1 de outubro, mas tendo em conta que o direito a decidir não é apenas o reconhecimento formal dum direito democrático expressado num ato pontual, mas o imenso esforço organizativo e de luta, demorado no tempo, de maneira a conseguir um povo a soberania, a independência, como fruto de todo esse esforço anterior.

Um invento: O comboio, um bem tão necessário como escasso na Galiza para termos comunicações físicas de qualidade, tanto interiores como com o norte de Portugal. Os caminhos de ferro com o norte de Portugal teriam de ser estratégicos para a Galiza, mas como é o Estado espanhol o que tem a competência e a capacidade de investimento nesta matéria e a Galiza não é estratégica para a Espanha, ainda hoje estamos a sofrer umas (in)comunicações físicas severas.

Uma música: Nunca é tarde, de Deolinda. Nunca é tarde para seguir/ O que ainda está por vir/ Vale a pena insistir e arriscar até sentir/ Que é hoje o dia.

Um livro: Os condenados da terra, de Frantz Fanon, título que me evoca a leitura do artigo “En defensa de Galicia” de Anselmo López Carreira publicado no Sermos. A responsabilidade da opressão é sempre do opressor, nunca do oprimido que resiste. Há intelectuais a pretenderem o convívio pacífico entre opressor e oprimido, sem entenderem que o opressor sem o contexto da opressão não tem nenhum interesse em coexistir com o oprimido, e como não o entendem batem no oprimido que resiste.

Um facto histórico: a fundação das Irmandades da Fala, porque houvo intelectuais que entenderam que a Galiza oprimida tem de se opor a continuarem a bater nela.

Um prato na mesa: um bom robalo grelhado, dos que preparam e servem em Matosinhos.

Um desporto: a natação. São muitos os benefícios deste desporto, mas um muito importante para mim: relaxa a mente e liberta o estresse acumulado pelas tensões da vida.

Um filme: A cidade branca, de Alain Tanner. Lembro o diretor numa entrevista a responder à pergunta de porque escolheu Lisboa para rodar o filme, com a afirmação de Lisboa o escolher a ele. É assim Lisboa: cativante. Para além da interpretação do ator Bruno Ganz, são as imagens fascinantes da cidade, banhadas por essa luz tão especial que a carateriza, acompanhadas pela música melancólica e envolvente que sai do saxofone de Jean-Luc Barbier, pelo que muitas pessoas nos apaixonámos por Lisboa.

Uma maravilha: o vale do Douro, “o prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso da natureza. Socalcos que são passadas de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor, pintor ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis da visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por trás dos montes, ora pasmado lá no fundo a refletir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta” (Miguel Torga).

Além de galego/a: em contracorrente, porque cheguei a perceber que a realidade não é algo externo, que nos vem dado, mas o resultado das ações das pessoas, e portanto submetida a relações de poder e interesses, e por isso esforçamo-nos para construir a Galiza liberada que queremos, não a Galiza subordinada que estão a construir outros que nos querem impor como dada.

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