Partilhar

Recordes dos Seres Vivos – Anaos e gigantes, das bactérias aos vertebrados

Recordes dos Seres Vivos – Anaos e gigantes, das bactérias aos vertebrados, de Klaus Richarz e Bruno P. Kremer, traduzido do alemão pelo professor Carlos Garrido

**

A substância tóxica mais virulenta que existe na face da Terra não é o produto de um obscuro laboratório militar ou de uma maquiavélica empresa farmacêutica que quer eliminar metade da população mundial. Muito pelo contrário. O maior veneno é completamente natural, livre de transgénicos e de produção local:

«O bacilo Clostridium botulinum, com as suas perigosas toxinas, chefia a lista negra: para o ser humano representam apenas cerca de 35 ng ou 0,5 ng/kg de massa corporal umha dose absolutamente mortal (a diminuta quantidade de 1 ng corresponde ao nadinha de 1 milmilionésima parte de um grama). A toxina botulínica é, assim, cerca de 50.000 vezes mais venenosa que o tóxico mais virulento até agora produzido sinteticamente, a tetraclorodibenzodioxina (TCDD), substáncia que pola primeira vez recebeu a atençom do público na seqüência de um grave acidente ocorrido a 1 de julho de 1976 numha fábrica de produtos químicos de Seveso, localidade do norte da Itália.»

É por causa disso que devemos estar atentos ao estado dos alimentos enlatados, de que somos grandes produtores cá, na Galiza:

«A toxina botulínica origina a intoxicaçom conhecida como botulismo, paralisia mortal causada pola ingestom de alimentos em mau estado e, nomeadamente, do conteúdo de latas de conserva que apresentam um suspeitoso amolgamento.»

Pode parecer surpreendente, mas não mais do que a aplicação que encontraram os humanos a tal prodígio da natureza:

«Sob a denominaçom botox, na cirurgia estética recorre-se desde há alguns anos a injeçons da toxina botulínica –naturalmente em doses extremamente pequenas– para conseguir um esticamento da pele do rosto.»

Poderíamos acrescentar nós que é bem verdade aquilo de Paracelso de que «dosis sola facit venenum», ou em vernáculo nosso, «só a dose é que faz o veneno». Pelos vistos, ainda há muitos que não perceberam as implicações de um princípio tão simples e andam a armar grande espalhafato pela presença de quantidades ínfimas de substâncias «provavelmente cancerígenas» no nosso ambiente ou na nossa alimentação.

Se achou interessantes os parágrafos anteriores, pequena amostra daquilo que o conhecimento científico da natureza nos pode desvendar, e gostava de animar as conversas de café com curiosidades como esta ou outras do mesmo teor, sobre valores extremos nos seres vivos, então desfrutará com certeza da leitura do livro Recordes dos Seres Vivos – Anaos e gigantes, das bactérias aos vertebrados, de Klaus Richarz e Bruno P. Kremer, traduzido do alemão pelo professor Carlos Garrido e editado na Galiza sob a chancela das edições Laiovento.

Ao longo de 300 páginas e mais de 160 verbetes, podemos debruçar-nos sobre as marcas mais espantosas alguma vez alcançadas pelos seres vivos: os maiores e os mais pequenos, mas também os mais raros, os mais antigos, os mais venenosos, os mais coloridos ou mesmo os mais feios. Números e comparações numéricas a mostrar-nos «a rica diversidade da vida» que nunca deixa de nos surpreender.

1280px-the_garden_of_earthly_delights_by_bosch_high_resolution

O livro estrutura-se em cinco capítulos ou secções, correspondentes aos grandes grupos de seres vivos: bactérias, protistas, fungos, plantas e animais. Precedendo a estes há uma muito pertinente apresentação do tradutor e um prólogo dos autores para nos introduzir no fascinante mundo dos números e das grandezas, de modo a facilitar a compreensão dos valores numéricos utilizados na obra.

No início de cada capítulo há uma pequena introdução que permite delimitar os diferentes reinos entre si, expondo as características singulares de cada um deles, que nem sempre são evidentes. Por exemplo, a capacidade de realizar a fotossíntese é atribuída, regra geral, exclusivamente às plantas, sendo utilizada como critério de pertença ao grupo. Mas na verdade, outros organismos, como as cianobactérias (do reino Bactérias) ou as algas uni e pluricelulares (do reino Protistas), também são fotoautotróficos. O critério que se revela determinante é uma propriedade da ontogénese:

«todos os organismos que hoje em dia se consideram plantas (verdadeiras) atravessam no decurso do seu desenvolvimento individual por um estádio embrionário enquadrado numha fase quiescente bastante longa.»

Por outro lado, a maioria das pessoas, produto da experiência quotidiana, apenas distingue entre animais e plantas. Popularmente, os fungos são considerados como uma variedade de plantas e, sob o rótulo de «micróbios», inclui-se qualquer ser vivo não observável à vista desarmada, não palpável, e de cuja atividade só sentimos os efeitos nem sempre agradáveis na nossa própria saúde. O que lhes confere uma aura de mistério e fascinação semelhante à que ainda causam as ondas eletromagnéticas ou a própria mecânica quântica. Ensejo aproveitado por charlatães de toda a laia para impingir misticismos vários e vender banha da cobra aos mais incautos. Os biólogos, pelo contrário, mais terra a terra, distinguem atualmente, no mínimo, cinco reinos, que são os que dão nome, com já mencionámos, às cinco secções em que se divide o livro.

Os primeiros capítulos são, se calhar, os que incluem pormenores mais técnicos, dado tratarem questões menos conhecidas do público geral, mais familiarizado com as tartarugas ou as abóboras do que com os micoplasmas ou os arqueontes extremófilos. Porém, a linguagem utilizada é sempre acessível e clara, com explicações facilmente compreensíveis para um leitor leigo na matéria. E além disso, o maior esforço investido compensa largamente, porque nos permite penetrar num mundo extraordinário e espetacular, cujo conhecimento tem aumentado enormemente graças aos métodos mais modernos de investigação. É, em palavras dos autores, onde encontramos as «formas de vida mais esquisitas»:

«Na realidade, a qualquer espécie planctónica habitante, por exemplo, do mar do Norte, ou de qualquer outro mar, poderia dedicar-se um capítulo próprio nesta parte do livro, pois, em todo o caso, bem o teria merecido polo encanto da sua forma e polo estranho e peculiar da sua natureza, em comparaçom com os organismos pertencentes ao ámbito corriqueiro da experiência quotidiana. De facto, à vista destes –na sua maioria– muito grotescos seres tamém teria rejubilado, por exemplo, um Hieronymus Bosch (1450-1516), ja que eles excedem de longe o estranhamento e o caráter perturbador das figuras concebidas polo insigne pintor holandês. No entanto, esse grandioso mundo ficou a Bosch totalmente vedado, umha vez que o microscópio, que lhe teria possibilitado observar esses microcosmos verdadeiramente incríveis, ainda nom fora inventado, infelizmente, na época em que viveu.»

No entanto, são os seres vivos tratados nos capítulos quatro e cinco, as plantas e os animais, que sem dúvida vão cativar a atenção de um público mais alargado. As razões são óbvias: fazem parte da nossa «zona de conforto», são aqueles seres vivos com que estamos mais familiarizados e que são mais acessíveis. E, dentre estes, são as aves e os mamíferos terrestres que contam no livro com uma representação mais desproporcionada em relação ao seu número de espécies, aliás, bastante baixo (0,17% das espécies conhecidas). E verdade seja dita, nós agradecemos o viés dos autores.

Num livro destas características, feito com o intuito de informar mas também com o de entreter, como aponta o tradutor na apresentação, seria fácil descambar para o sensacionalismo e a falta de rigor, à procura dos números mais espetaculares, mas não é este o caso. O facto de ambos os autores serem doutores em Biologia com longos percursos nos âmbitos da conservação da natureza e da docência universitária e terem publicado numerosos livros didáticos, de divulgação e especializados, é uma garantia de terem o discernimento suficiente para saberem separar os factos das águas turvas da mera especulação. Como se evidencia, por exemplo, quando abordam a questão sobre qual tenha sido o maior animal terrestre que já alguma vez existiu, abstendo-se de atribuir o “prémio” ao Argentinosaurus:

«umha vez que nem as escavaçons mais recentes tenhem proporcionado um esqueleto completo desse dinossauro, e que as suas dimensons só se podem calcular aproximativamente, o Giraffatitan de Berlim e o Brachiosaurus de Chicago continuam a ser os recordistas, por enquanto, entre os vertebrados terrestres.»

Porque, do contrário, a divulgação científica torna-se em pseudocientífica, espalhando mitos que uma vez instalados no imaginário coletivo custam muito a corrigir. Quem não ouviu nunca falar de que só utilizamos 10% do nosso cérebro ou que o hemisfério direito é o criativo e emocional e o esquerdo o lógico e racional?

E neste sentido, de transmitir informação com rigor, é também fulcral o labor do tradutor, que deve não só ser capaz de transmitir a mensagem do texto de partida como também saber adaptar «à realidade da comunidade sociocultural recetora todos aqueles elementos (…) que estiverem privativamente ligados à comunidade sociocultural de partida1.».

Não interessa aqui abordarmos todas as diferentes estratégias de tradução utilizadas, simplesmente salientar a profusa utilização de notas de rodapé para introduzir, entre outras, adaptações naturalizadoras, que enriquecem a leitura e informam o leitor galego ou lusófono:

«Na Galiza, além da Urtica dioica e da U. urens, tamém ocorre a espécie U. membranacea, a urtiga-de-caudas; em Portugal, além dessas três espécies, tamém a U. pilulifera. (N. do T.)»

Em resumo, uma autêntica prenda que chegou à nossa língua neste último outono diretamente do alemão, só um ano depois de ter sido publicado o original. Prontidão totalmente inédita na publicação de traduções de textos de divulgação científica na Galiza e que representa um marco no mundo editorial galego pela sua atualidade, pela combinação linguística e pela qualidade da própria tradução.

Uma única ressalva. Pena é só as fotografias serem a preto e branco. Mas, pelos vistos, não é defeito da edição galega, já que o mesmo acontece com a edição alemã. Só a versão eletrónica em alemão é que dispõe de fotografias a cores, o que é um bocado paradoxal, visto a maior parte dos dispositivos de leitura de livros eletrónicos só apresentarem no ecrã diferentes tons de cinzento. Mas, enfim, Deus dá nozes a quem não tem dentes!

NOTAS:

1 Carlos Garrido, A traduçom do ensino e divulgaçom da ciência, Universidade de Vigo, Serviço de Publicações, Vigo, 2016, p. 111.

O resto das citações que aparecem são do livro resenhado.

 

Da orelha do livro:

Klaus Richarz é doutor em Biologia e desenvolveu intensa atividade no campo da proteçom ambiental. Foi diretor do Instituto de Ornitologia Aplicada de Francoforte do Meno (Alemanha) e continua envolvido, na qualidade de perito, em diversos projetos de conservaçom da natureza. Autor de numerosos livros didáticos, divulgadores e especializados.

Bruno P. Kremer é doutor em Biologia, foi docente do Instituto de Biologia e da sua Didática da Universidade de Colónia e agora ocupa-se com questons científicas de projeçom regional, sobretodo da Renánia (Alemanha). Autor de numerosos livros didáticos, divulgadores e especializados.

Carlos Garrido (tradutor) é doutor em Biologia pola Universidade de Santiago de Compostela e professor de Traduçom Técnico-Científica na Universidade de Vigo. Estudioso da língua especializada, lexicólogo e tradutor científico, Carlos Garrido é autor da monografia A Traduçom do Ensino e Divulgaçom da Ciência (2016) e Presidente da Comissom Lingüística da Associaçom de Estudos Galegos.

 

Areias de Portonovo, uma jornada atlântica da Galiza ao Brasil

A USC comemora os 50 anos da revolução de 25 de Abril que deu início à democracia contemporânea em Portugal

Sónia Engroba: ‘Não somos conscientes nem conhecedores do poder da nossa própria língua’

Novidades Através: 50 anos de Abril na Galiza

Lançamento do livro González-Millán, a projeção de um pensamento crítico, em Braga

Valentim Fagim ministra o ateliê Estratégias alternativas para o galego na Corunha

Areias de Portonovo, uma jornada atlântica da Galiza ao Brasil

A USC comemora os 50 anos da revolução de 25 de Abril que deu início à democracia contemporânea em Portugal

Sónia Engroba: ‘Não somos conscientes nem conhecedores do poder da nossa própria língua’

Novidades Através: 50 anos de Abril na Galiza