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Maria Dovigo: «Temos de quebrar a dualidade entre a língua da natureza e a língua da civilização, ideia que orienta o ‘decreto do plurilinguismo’»

PGL – Maria Seoane Dovigo é uma corunhesa a residir no Portimão onde descobriu África. É  embaixadora do Algarve na Galiza e da Galiza no Algarve. Sendo criança achava que elas falavam em castelhano e os adultos em galego e quando cresceu, isso viu-se a corroborar.

PGL: Maria Seoane Dovigo nasceu, curiosamente na Corunha. No entanto, o teu apelido não é o que parece, não é?

Maria Dovigo: Pois não. Parece “do Vigo”, mas não é. Só descobrimos a origem do nosso apelido através do facebook. Uma prima minha contactou com um Dovigo apaixonado pela genealogia que tinha feito a nossa árvore até 1550. Soubemos por ele que procedemos duma família sefardita que fugiu da sua Sefarad depois do decreto de expulsão dos judeus dos Reis Católicos e se assentou na República de Veneza, onde havia liberdade de cultos. O étimo do apelido é Ludovico. O engraçado é que com estas pesquisas também encontramos um outro apelido dos catalogados como de “judeu-conversos”.

PGL: Sendo teus pais galeguistas educaram-te em castelhano. Por quê?

MD: Para me proteger. Não se pode explicar sem contextualizá-lo no tempo e no lugar em que os meus pais e eu nascemos: eles durante a Guerra Civil, eu, uns anos antes da morte de Franco e todos na Corunha.

A minha mãe foi muito castigada na escola por falar na língua da sua mãe e sempre perguntava por quê. A única resposta era: “Tienes que hablar bien”. Nunca perdoou que lhe sujassem a sua inocência de criança obrigando-a a cantar o “Cara el sol” todas as manhãs, nem que lhe roubassem o conhecimento do seu próprio país. A família de meu pai tem suficientes feridas da repressão franquista sobre as quais já nem falo: não são difíceis de imaginar. Pelos anos em que eu comecei a frequentar a escola, que tinha um professorado que não ocultava o seu franquismo, a minha mãe sabia que eu iria ser discriminada, e muito, se falasse em galego e não quis que passasse por essa experiência. Nunca saberei se a história seria diferente se tivesse nascido dez ou mesmo cinco anos mais tarde. Na escola não havia rasto de galego para além das palavras que os alunos dizíamos nas nossas frases (todos éramos filhos de pais galego-falantes).

E a Galiza era só o nome duma região com quatro províncias entre as muitas outras que repetíamos diariamente com o ponteiro da professora sobre o mapa de Espanha. Nada mudou até 1982, quando recebemos o nosso primeiro professor de galego (passados os anos e sabendo como era a minha escola, pergunto-me o que é que ele não terá passado na altura).

Naquilo sobre o que a minha mãe tinha um poder que ninguém lhe podia roubar, no mundo dos afectos, ai sim se exprimia em galego. Falando há uns dias sobre esta pergunta com a minha irmã, ela lembrou-me a cantiga com que me arrolava para adormecer: “Esta meninha tem sono,/ tem-me ganas de dormir,/ tem um olhinho pechado/ e o outro não o pode abrir”. A cantar nunca aprendi noutra língua que não fosse o galego. Deve ser o território inexpugnável da minha raça (no sentido em que a minha avó utilizava o termo, os traços da família que se reflectiam na nossa alcunha: as cotovias). Não havia concerto de grupos que cantassem em galego ao que a minha mãe não me levasse, nem manifestação pelos direitos do nosso país no qual ela não participasse (nelas aprendi o nosso hino), palestra sobre cultura galega à que ela não fosse sempre comigo da mão, sempre dizendo-me: “Não te esqueças nunca disto que estas a viver”.  Ela queria recuperar como fosse a pátria que lhe tinham negado e fez essa viagem comigo.

O primeiro livro que ela comprou foram as obras completas de Rosalia de Castro naquela velha edição de Aguilar e depois um livro que tinha as biografias de Rosalia, Emilia Pardo Bazán e Concepción Arenal. O seu esforço por conhecer a história do país estava muito ligado à sua consciencialização como mulher, intuição que me parece bastante acertada. Pelos muitos anos que o meu pai trabalhou na que foi centenária tipografia Roel da Corunha, em casa não faltavam exemplares de revistas e livros em galego ou sobre a Galiza que eles editavam.

Com tudo isso à minha volta, lembro ter o pensamento de que as crianças falávamos em castelhano e os adultos em galego, e que quando eu crescesse também falaria em galego.  A minha intuição de menina fez-se realidade. Com este ambiente foi natural que nalgum momento eu restabelecesse o fio da transmissão da língua. Foi quando lhe ouvi a um professor de galego do liceu (bem diferente da escola) dizer-nos que a responsabilidade de que os nossos filhos falassem em galego era inteiramente nossa. Foi uma pedrada na minha consciência. Voltei à casa falando em galego e foi como se nunca tivesse falado noutra língua, até hoje.

 

PGL: O teu acesso à estratégia reintegracionista foi por meio de dous professores, não é?

MD: Sim, fundamentalmente através de dois professores do liceu. Também tive a sorte de que a minha irmã fosse aluna de Elvira Souto na escola de Magistério. Ouvia o que a minha irmã comentava sobre o reintegracionismo e essas ideias andavam à minha volta. Depois, no primeiro ano do liceu, uma professora emprestou-me um livro em português, o Bichos de Miguel Torga e levou-me a ver uma peça de teatro da companhia Arte Livre do Brasil.

Não lembro ter tido nunca a ideia de que falava uma língua diferente do português. Simplesmente me parecia que tinham uma outra pronúncia, como os meus primos da Argentina, e que não tinham os castelhanismos do galego que ouvia na Corunha. Depois tive a sorte de ser aluna de António Gil Hernández, cujo magistério quer sobre a literatura, que era a disciplina que ele leccionava, quer sobre a linguística, tanto me marcou.

PGL: Casaste com um homem algarvio e moras em Portimão desde há anos. Como este facto influenciou a tua visão da língua?

MD: Foi mais um degrau no conhecimento da nossa língua. Não mudou a visão que tinha dela. Alargou-a é mais. Habituei-me a ouvir a nossa língua com as suas variadíssimas pronúncias, pôs-me em contacto com essa grande esperança que para mim é o Brasil e descobriu-me um continente que desconhecia completamente, que é África. A esse contacto também ajudou a origem do meu marido, que, embora “geneticamente” algarvio, nasceu e cresceu em Casablanca, as muitas conversas que tenho tido com colegas vindos das antigas colónias e o contacto diário que tenho com os meus alunos africanos.

PGL: Estás apaixonada polo Algarve. Aliciavas os nossos leitores e leitoras para visitar aquelas terras?

MD: O Algarve é uma região dum carácter muito vincado. Não é por acaso que os reis se Portugal se faziam chamar “rei de Portugal e dos Algarves”. Sempre recomendo evitar as vilas mais turísticas, pois podem ficar com a ideia de que isto está colonizado pelo inglês. Eu gosto especialmente da metade ocidental, o Barlavento (o Algarve divide-se em Barlavento e Sotavento como se fosse um barco), pelos trechos ainda virgens do seu litoral de falésias. É uma paisagem feita pelo mar, o vento e o sol, esse sol tão intenso que não deixa espaço às sombras.

No início estranhei imenso, mas agora entranhei mesmo, seguindo o ditado português. E depois convidaria-os a que conhecessem o rasto dos dois momentos históricos que mais marcaram a história do Algarve: a época do reino muçulmano (deliciem-se com os doces algarvios e leiam os nomes dos lugares, que têm uma sonoridade herdada duma outra língua: o próprio nome do Algarve, que significa “ocidente”, Aljezur, Bensafrim, Silves, Alcoutim, Odiáxere… ) e a época dos descobrimentos. Era no Algarve que o Infante D. Henrique tinha a sua escola de navegantes. Vejam a belíssima rosa dos ventos que está dentro da fortaleza de Sagres, visitem a cidade de Lagos, que tem o triste privilégio de ter o primeiro mercado de escravos africanos e também o de ser a última terra portuguesa que pisou o rei D. Sebastião antes de se perder na batalha de Alcásser Quibir.

 

PGL: Como reagem os teus concidadãos quando lhes mostras a tua galeguidade? Sentem curiosidade?

MD: Tenho vivido todos os tipos de reacções, desde os que me chamam separatista por dizer que sou galega, até o extremo contrário, os que pensam que Portugal nunca deveria ter deixado Galiza para trás. Normalmente com os colegas do norte sempre surge uma simpatia espontânea, como a de dois vizinhos que se encontram longe da casa e até gostam de encontrar semelhanças entre o seu português nortenho e as variantes galegas.

Tem-me acontecido muitíssimas vezes uma situação estranha. Aqueles que conhecem a Galiza perguntam-me de que lugar da Galiza sou. Eu respondo: da Corunha. Correcção imediata: “ah!, de La Corunha”. Eu levo na brincadeira e digo que essa é a cidade do presidente da câmara. Mas houve um caso em que ia tendo uma surpresa bastante desagradável. Quando casei, a conservadora do registo civil pensou que o nome de “A Coruña” que aparecia no meu assento de nascimento era um erro e eu tive de alertá-la para que na minha certidão de casamento não aparecesse “La Coruña” como lugar de nascimento.

Já não é pouco ter de engolir o ñ. Ora, o L é que é demais. Nesse dia lembrei à conservadora que a toponímia oficial da Galiza era a galega e que simplesmente respeitasse o que aparecia no documento oficial que eu apresentava. Apesar dalguns episódios e comentários que nunca teria esperado viver e ouvir em Portugal, prefiro ficar com todos os testemunhos de carinho e interesse pelo nosso país que recebi.

Um colega que passava todos as férias de verão em Muros, um outro que tinha lido o Sempre em Galiza pela admiração que sentia por Castelão, um outro que conhecia muitíssimos versos de Rosalia, uma colega da Póvoa do Lanhoso com quem tive longas conversas sobre as falas minhotas ou o meu próprio marido, grande apreciador de palavras especificamente galegas e do nosso sentido do humor. Para além disso, o meu marido também é reintegracionista e tem menos compreensão do que eu com a ignorância de muitos dos seus compatriotas sobre a Galiza. Já me tem repetido várias vezes aquela expressão portuguesa de “Defende a tua dama”.

PGL: Por que o Brasil é um bom trunfo?

MD: Por três razões: os brasileiros não têm os preconceitos sobre nós que não poucos portugueses têm , não têm esse princípio que parece lei em Portugal de “não querer incomodar a Espanha” e muito menos ideias iberistas e porque é o país com mais falantes de português. Não compreendo a atitude de muitos portugueses de medo a perder o seu domínio sobre a língua. Lembro uma discussão sobre o Acordo Ortográfico que vi na RTP entre o professor Carlos Reis e o professor Vasco Graça Moura. “Mutatis mutandis” parecia uma discussão entre um isolacionista e um reintegracionista. O que verifico na prática, por exemplo dos professores da minha escola, é que ninguém está a seguir o Acordo.

PGL: O facto de seres filóloga, dá alguma perspectiva especial à tua visão da questão da língua?

MD: Com certeza. Dá-me conhecimento sobre as histórias das línguas,  sobre a etimologia das palavras, que me faz perguntar-me por que a nossa língua “oficial” é a única língua romance que escreve “género” com uma letra inicial diferente ao do seu étimo latino, sobre todos os âmbitos da linguística… Dá-me argumentos fundamentados para defender a estratégia reintegracionista.

 

PGL: Que visão tinhas da Agal? que esperas dela?

MD: Tinha a visão duma associação que leva três décadas defendendo a norma internacional para a nossa língua e que tem publicado textos básicos para explicá-la e difundi-la sem qualquer apoio oficial. Não espero dela nada que não me tenha dado já em todos estes anos em que segui o seu lavor. Sou eu a que quer participar activamente nos avanços da nossa língua e deixar de ver tudo ao longe e, modestamente, oferecer a experiência que me deram os anos que levo em Portugal.

PGL: Por onde achas que deveria transitar a estratégia reintegracionista para avançar socialmente?

MD: Acho que temos de continuar o nosso lavor de dar a conhecer esta mais-valia da nossa língua. Quem não se convence sozinho das vantagens desta estratégia é por preconceitos. Eu tenho a esperança de que, entre os que somos falantes comprometidos com a língua, se estenda cada vez mais a ideia de que é absurdo ter este tesouro da Lusofonia à nossa frente e negar-se a explorá-lo. Surpreende-me é a quantidade de pessoas que dão o passo mais difícil, reconhecer que  falamos a mesma língua que milhões de pessoas no mundo, e depois não dão o passo mais fácil, que é levar essa ideia à prática usando a grafia internacional da nossa língua.

Para além disso, parece-me muito importante que divulguemos uma terminologia culta para todos os âmbitos da nossa vida. Custa, mas se continuamos a “ingresar” dinheiro no banco em vez de o “depositar”, se escrevemos em “ordenadores” e não em “computadores”, se “levantamos” actas em vez de “lavrá-las”, se temos “xaquecas” e não “enxaquecas” e ou tantos outros exemplos mais que poderia dar, nunca conseguiremos a tal hegemonia social para o galego que procuramos.

Sei que a nossa língua se está a deteriorar pelas suas bases, mas é pela mesma razão: porque nas conversas quotidianas precisamos cada vez mais do castelhano para sermos compreendidos. Para além disso, insisto no da terminologia culta porque temos de quebrar as dualidades ideológicas entre galego e castelhano. Circula por algumas páginas um vídeo muito bonito que se chama “Para que serve o galego”. Tirando uma referência ao uso da nossa língua nas novas tecnologias e à ligação com a Lusofonia (que poderia pôr em prática com outra ortografia), todas as demais palavras que se vêem na gravação dizem respeito à natureza, aos afectos ou ao âmbito familiar. Acho bem apelar aos nossos sentimentos. Mas também gostava que dissesse que serve para pedir um registo criminal (não um galeguizado “certificado de penais”), para redigir pareceres médicos, para fazer a escritura da casa… Todos os que querem que o galego seja a língua nesses âmbitos, mesmo na norma da Xunta, têm muitas histórias para contar. É o tal “galego para objectores de consciência” do que falava o professor Carvalho Calero.

Não é suficiente com que a nossa língua seja língua familiar e de cultura (e oxalá não se percam esses usos). Temos de quebrar de vez essa dualidade entre a língua da natureza e a língua da civilização, que é uma das ideias que orientam o actual “decreto do plurilinguismo”. Se calhar temos é questionar essa dualidade, que para além de me ter um certo ar patriarcal (que está no próprio termo de “língua materna”, tão justamente atacado por muitos linguistas), deixa a Natureza fora da História e da civilização, como se fosse um refúgio para o homem urbano, quando a Natureza faz parte, por vezes como protagonista principal, da História e da civilização. E nós, galegos, temos uma longa experiência que o demonstra. Ou não é a exploração até a destruição dos nossos recursos, do nosso meio, uma das constantes da história da Galiza desde a sua desaparição de facto como território soberano? Mas isso já é outra conversa.

Conhecendo Maria Seoane Dovigo

  • Um sítio web: ainda me sinto órfã de Vieiros.
  • Um invento: duvido entre a imprensa e a máquina de lavar a roupa.
  • Uma música: a ópera Tristão e Isolda de Richard Wagner.
  • Um livro: O apelo da selva de Jack London
  • Um facto histórico: ainda não chegou. O tempo dos bardos e da nossa redenção, por utilizar as palavras de Pondal. Gosto muito daquela ideia da “História do futuro” do Padre Vieira, dessa imagem de Castelão com o homem ainda por fazer, tarefa à que todos estamos convidados. Espero uma História como grande esforço de imaginação colectiva. Parafraseando o discurso de Pondal no célebre banquete de 1856, “nós somos de nós próprios soberanos”. Temos de interiorizar essa afirmação de liberdade sem condições. Ai é que começa o facto histórico que espero.
  • Um prato na mesa: mexilhões ao vapor com umas pinguinhas de limão.
  • Um desporto: o atletismo.
  • Um filme: Viver de Akira Kurosawa.
  • Uma maravilha: o coração do meu homem.
  • Além de galega: algarvia.


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