Cultura

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Por Rudesindo Soutelo (*)

“Quando se pronuncia a palavra «cultura», é grande a probabilidade de alguém empunhar um revólver, pronto a disparar!” diz Gilles Lipovetsky na introdução de A cultura-mundo1. O nazismo eliminava os intelectuais e artistas por degenerados, o estalinismo por burgueses. As ditaduras de todo o espectro político coincidem em culpabilizar a cultura, e as democracias não ocultam a fadiga de lidar com uma cultura que pensa, reflete e critica o poder.

No século XVIII, Schiller escrevia como cidadão do mundo; a Ode à Alegria – mercê de ser utilizada por Beethoven no final da Nona Sinfonia– é desde 1985 o Hino da Europa. A cultura de Schiller, como a dos filósofos gregos e a das origens do cristianismo, era a universalidade do género humano; um ideal ético, partilhado por Beethoven, que recusava considerar os outros povos como inferiores. Situar o amor à humanidade acima do amor à origem sempre foi percebido como um perigo, uma alta traição às pátrias.

Lipovestky diz também que a cultura era um sistema completo e coerente de explicação do mundo2. Mas aquela utopia de ser ‘cidadãos do mundo’ e de “exaltar os valores da liberdade e da tolerância, do progresso e da democracia” foi dando passo ao mundo sem fronteiras do capitalismo cultural, o hipercapitalismo de consumo, onde a cultura se impõe como uma indústria, um complexo mediático-mercantil que proclama o “tudo é cultura” e elimina as fronteiras simbólicas da alta e baixa cultura, da ciência e superstição, empobrecendo a vida social e intelectual, e glorificando a barbarização da cultura3.

Consultada a palavra ‘cultura’ em dois prestigiosos dicionários da internet4, percebemos a origem agrária deste termo pois as primeiras definições referem-se ao cultivo da terra, lavoura e técnicas para obter produtos vegetais para consumo. Apenas em sexto lugar é que aparece a definição de cultura como conhecimento, saber, educação, estudo, valores sociais e aplicação do espírito. Cultura é, pois, um artifício, uma intervenção do intelecto humano na natureza, desenvolvendo formas de pensamento e conceitos filosóficos. Cultura é uma determinada organização e conceção humana da natureza e só em sentido metafórico é que podemos falar de cultura, de música ou de arte na natureza. Claude Lévi-Strauss, em La Pensée sauvage, diz-nos que na sua forma pura, ‘selvagem’ ou mítica, a cultura é uma ordenação totalizadora do mundo5.

Então o que é que concita as iras do poder quando se menciona a palavra «cultura»? Já, na antiga Grécia, Platão expressou, na República, um temor que parece continuar vigente: “nunca se abalam os géneros musicais sem abalar as mais altas leis da cidade”6. A cultura dá argumentos aos indivíduos para questionar o poder mas nenhum ‘poderoso’ aceita de bom grado submeter a sua autoridade. O que irrita os “cretinos com poder”7 –expressão de Diego Armario que assim intitula o seu recente livro– é o prestígio da alta cultura, erudita e nobre, a ‘cultura culta’ do humanismo clássico, a cultura do mérito, da inteligência, a cultura que cria, inova e tem iniciativa8.

Não se pode pensar no ser humano carecendo de uma vontade de superação, de se ultrapassar, de transcender –o que Nietzsche denominou “vontade de poder”9. Mas essa identidade não se recebe nem se compra; a cultura, o conhecimento, segundo Robert Stake, não se descobre, constrói-se10.

Apenas depois de conhecer a cultura é que ela pode ser apreciada11.

 


(*) Compositor e Mestre em Educação Artística. Artigo publicado simultaneamente no jornal Aurora do Lima (Viana do Castelo).


Notas:

1 Lipovetsky, G., & Serroy, J. (2010). A cultura-mundo (Resposta a uma sociedade desorientada). (V. Silva, Trad.) Lisboa: Edições 70, p. 11.

2 Ibid., p. 12.

3 Ibid., p. 32.

5 Leví-Strauss, C. (1970). O pensamento selvagem. São Paulo, Brasil: Companhia Editôra Nacional, Editôra da Universidade de São Paulo. p. 299.

6 Platão. (2008). A República (11ª ed.). (M. H. Pereira, Trad.) Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 169 [424c].

7 Armario, D. (2010). Cretinos com poder. (M. B. Cruz, Trad.) Lisboa: Babel – Arcádia.

8 Lipovetsky, G., & Serroy, J. op. cit., p. 209.

9 Nietzsche, F. (2004). A vontade de poder (Vol. 1). Porto: Res.

10 Stake, R. E. (Outono de 1994). Composition and Performance. Bulletin of the Council for Research in Music Education, 122, pp. 31 – 44.

11 Lipovetsky, G., & Serroy, J. op. cit., p. 224.

 

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