Braço e cerebro

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Na década de 30, um sector do movimento libertário galego pujo em andamento a publicaçom “Brazo y Cerebro” na cidade da Corunha. A experiência, que como tantas outras foi gorada polo genocídio de 1936, era umha das muitas que na altura pretendeu junguir a reflexom e a acçom, acompassando-as. Num tempo em que a classe trabalhadora vivia maiormente de trabalhos duros e penosos, correspondeu ao movimento obreiro – mas especialmente ao anarquismo – a ênfase na ideia de que o serviço ao colectivo, que supunha um esforço físico, devia nutrir-se também de altas doses de reflexom e do exercício de certo pensamento abstracto. A teoria socialista estava bem abandeirada por xastres, sapateiros ou tipógrafos, aqueles obreiros que menos padeciam fisicamente no centro do trabalho, mas os moços e moças libertários queriam levá-la também a pedreiros, alvanéis ou marinheiros, por darmos alguns exemplos das vidas duríssimas da Galiza do trabalho.

A revoluçom tecnológica virou aquela sociedade de pernas para o ar, e parte da classe trabalhadora autóctone (nom assi a imigrante, dedicada às tarefas mais toscas e embrutecedoras) vive em boa medida em gabinetes, escritórios ou comércios, encadeada às redes tecnológicas mundiais e os seus fluxos infinitos de ofertas e propostas. Numha curiosa inversom com o que acontecia há justo um século, este novo proletariado, quando tem consciência política, vive mergulhado na formulaçom de ideias, e porém distanciado das suas realizaçons práticas, como se o ‘cerebro’ que utilizavam como imagem os libertários corunheses virasse de tamanho gigantesco, e o ‘braço’ encolhesse até o raquitismo. Pois como é sabido, a conversom das ideias em realidade material precisa do concurso do corpo inteiro. Umha imagem ainda mais desacougante que a do bruto descerebrado é a do reflexivo ensimesmado, tolheito para qualquer dimensom prática das cousas.

Nom é um tema baladi para o independentismo. Há uns dias, um bom amigo que segue com atençom o curso dos movimentos populares parabenizava de maneira um chisco sesgada as achegas da nossa causa. Como os galeguistas do século passado, que pugérom em andamento produtos culturais e políticos logo assumidos por toda a sociedade, além do próprio galeguismo (a bandeira, o hino, o celtismo, ou a a mesma autonomia), o independentismo activou, ainda obviamente num rango menor, visons e projetos que vam mui além do arredismo: a visom reintegracionista da língua, que se desligou do radicalismo político e atingiu parte da classe média; o movimento dos centros sociais, um artefacto sem precedentes que fijo conviver harmonicamente a aposta militante dura com o mundo da cultura e do lazer; figuras já populares como o Apalpador ou o Merdeiro; ou a socializaçom do mapa da Galiza completa e comarcal, que recordávamos há umhas semanas com os seus protagonistas.

O meu amigo diz-me que “essas si que fôrom ideias”, e lamenta-se que nestes tempos de crise nom apareçam revulsivos de semelhante intensidade para fazer avançar as cousas. Levando parte de razom, engana-se num aspecto essencial, e fai-no por essa miragem que supom olhar o mundo, e particularmente as causas colectivas, através do filtro das redes sociais. Por trás de todas essas iniciativas houvo, é evidente, umha reflexom aguda e umha capacidade de captar as necessidades do momento, fulcral em qualquer propósito político. Mas também e sobretodo houvo presença de muitos braços, umha capacidade admirável de suplir as carências numéricas e económicas e a ausência de apoio político e institucional relevante, com a força do trabalho voluntário: obras acometidas com mao de obra por vezes nom profissional, desenho gráfico plasmado por pessoas autodidactas na matéria, longos desvelos na agitaçom noctura e diurna, com evidentes custes repressivos, milhares de kilómetros de carro para espalhar a ideia ou concretizá-la em foros e assembleias. Nada mui semelhante ao desenho distante, formal e asséptico do ‘think tank’, senom mais bem um processo que recorda à persistência no ensaio-erro do cientista, ou ao desvelo do inventor sem meios que logo de argalhar se encarrega de vender o seu produto. A memória de todo esse emprendimento é recente, e as habilidades que o fixérom possível estám entre nós. Numha sociedade cruzada por múltiplas crises que já intue a ameaça de desfeita, esta tradiçom vai dar novos frutos.

[Este artigo foi publicado originariamente no galizalivre.com]