Ouro nas fontes

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“Fuente del Oro, 1898” ‑ ou talvez 1890 que a leitura é duvidosa ‑ é a inscriçom que se pode ler no frontispício da fonte semienterrada que jorra água sem parar desde os anos finais do XIX num canto do parque compostelano de Galeras, próximo da mansom do presidente da Junta. Na frontaria podemos ler também por duplicado: “Pereiro”, o nome do construtor, com certeza.

Ouros, donzelas e fontes andárom sempre misturados em lendas e contos velhos. Às vezes, as donzelas penteiam os cabelos com pentes de ouro, outras, cautelosas galinhas apenas entrevistas no lusco-fusco, aparecem com a sua apressada ninhagada de pitos de ouro. Donzelas já nom se vem depois de instalarem redes de subministraçom de água corrente mas, galinhas com a sua ninhagada, ainda é possível avesulhar se houver sorte.

A minha experiência mais próxima em avistamento de galinhas com ninhagada de ouro adjunta foi no quinze de setembro de 2012, por ocasiom da primeira Ramagem Literária dos clubes de leitura de português Pega no Livro. Quadrou de escolhermos a mágica Terra cunqueirá de Miranda que se estende em volta da evocadora sé episcopal de Maeloc, em Bretonha, lá na Terra Chã mindoniense. De manhã, fomos todos à Fonte do Tesouro que mana num canto do Couto da Aurugeira para tentar surpreender a galinha em hora propícia, seguindo o passo dos companheiros britonienses que guiavam nossos passos por aquela terra tam pródiga em tesouros. Galinha nom vimos nengumha, talvez devido ao barulho galusófono que levantava tanto invasor inesperado ignorante das regras que regem em bosques sagrados. Mas contodo, acredito que por ali devia andar.

Sifom de Aguas de la Fuente del Oro (Santiago de Compostela)
Sifom de Aguas de la Fuente del Oro (Santiago de Compostela)

O engenho comercial picheleiro nom podia desperdiçar a posse de umha autêntica fonte de ouro na cidade. Santiago, cidade afeita a vender fantasia a foráneos, tinha que fazer ostentaçom do seu áureo manancial e foi por isso seguramente que a fonte aparece nomeando umha daquelas garrafas de sifom a pressom[1] que presidiam em tempos refeiçons domésticas e, com seguridade, mais de umha sobremesa ou serao no café Derby. É a mesma criatividade comercial compostelana que produziu o perfume Musgo de Compostela ou os caramelos Pedras de Compostela. No caso do sifom, a água carbonatada aparece disfarçada com a imagem da Fonte dos Cavalinhos da Praça das Pratarias, muito mais vistosa que a humilde Fonte Douro que da que falamos.

Fonte Douro, com efeito, é a autêntica denominaçom do manancial compostelano, mínimo e remoto membro da família que tem por patrúcio presidente o majestoso Rio Douro, nascido nos Picos de Urbiom, lá nas terras altas de Sória, para entrar em Portugal por Barca d’Alva e morrer quando lhe chega a hora pé do Porto.

Tanto ouro fluvial nom podia durar. Em seguida, tanta riqueza foi reduzida às suas veneráveis raizes hidronómicas paleoeuropeias nos laboratórios dos etimologistas. A coruja científica gosta destas lamentáveis operaçons de desencantamento.

Abundam os topónimos hídricos e orográficos, aqueles que ordenárom os primórdios do território como um mapa de estreia para tomar posse de um mundo inominado. Foi daquela quando o país se encheu de Minius, Durius, Ávias, Sores, Úmias, Návias. E com eles, a magnífica família dos Douro, Doiras, Touro, provavelmente, – junto com Túria, Darro, Duratom e tantos mais na Espanha – junto com os Fontoiras e Fontouras. Também a compostelana Fonte Douro e o saudoso Vale d’Ouro onde o Marechal Pardo de Cela perdeu a cabeça. A toponímia hidronímica galaica que tivo em Edelmiro Báscuas o seu sábio que Galiza e em Juan José Moralejo o mestre insuperável em zombaria científica, onde a toponímia galega gosta de jogar com o sorriso como autêntica gaia ciência que é.

Surpreende que a Fonte Douro do Parque de Galeras brote mesmo a pé do rio Sarela, no breve percurso da corrente do flúmen para encontrar o Sar rosaliano. Nada mais compostelano que o Sar e o Sarela, irmaos de baptismo do rio Sor e também da vila de Sárria. Outro antiquíssimo hidrónimo europeu que confirma para quem nom acreditar que a Galiza foi e será sempre o país dos mil rios porque assi foi determinado polo feiticeiro da Terra de Miranda, dom Álvaro Cunqueiro.

Ficamos sem ouro nas fontes mas ganhamos prosápia fluminense; no entanto, donzelas e pitas fugidias seguem a vagar nas vizinhanças para quem as sabe ver, fieis ao hábito arquetípico da água onde a Galiza nasce e renasce.

Desculpem a imodéstia mas para um fisterrám idoso como vem sendo o cidadám que lhes fala, duira é palavra patrimonial e comum de toda a vida[2]. As duiras, ou doiras ‑ para nós todo “oi” devém em “ui”, mesmo a noite – fôrom sempre as torrentes desbocadas que prenunciam ou confirmam o inverno baixando adoecidos do monte para inundar caminhos e ervais. Em tempos, a gente abria as agüeiras para as duiras passarem e acabar sossegando em campos e caminhos. O Douro foi sempre para nós apenas a imensa Duira que baixa do Urbiom a Matosinhos. A língua que nomeou cada recuncho do país guarda tesouros mais antigos ainda do que as donzelas e as galinhas que se negam a abandonar as águas incessantes das duiras sossegadas.

 

NOTAS A RODAPÉ:

  1. Sifom como o que ilustra este artigo
  2. O Diccionario enciclopédico gallego-castellano, do bom lexicógrafo Eladio Rodríguez (1864 – 1949), fundador que foi e presidente temporário da RAG (1926 – 1934), que descansa na biblioteca paterna da aldeia desde a sua apariçom (1958), foi patrocinada pola Casa de Galicia de Caracas nos tempos mais escuros. Ali pode ler quem quiger: “Duira/Doira, muy común en la comarca de Bergantinhos e Corcubiom”; a minha dupla raiz corcubionesa e bergantinhá concorda plenamente.