O Tribunal Anticonstitucional

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Um partido político espanhol de extrema direita anuncia que apresentará uma proposta de lei para impedir que as provas à função pública incluam exames de conhecimento da língua nativa em Galiza, Euskadi, Catalunha e Valência, territórios peninsulares onde o castelhano compartilha com as línguas nativas o estatuto de língua oficial. O fundamento legal é a própria Constituição espanhola do ano 1978, em cujo artigo 3.1 fica definido que a única língua de obrigado conhecimento para todos os espanhóis é o castelhano. Isso leva implícito que nem o galego, nem o euskera, nem o catalão são línguas de obrigado conhecimento, inclusive para os próprios nativos dessas línguas. Quer dizer, os galegos não temos lei nenhuma que nos obrigue a conhecermos galego, mas sim manda em nós uma Constituição que nos obriga a conhecermos, sim ou sim, castelhano.

E como nos obriga? A Constituição espanhola obriga-nos a conhecer castelhano estabelecendo que essa é a língua que todos os espanhóis têm o dever de aprender e o direito de empregar. Reparemos no dever de aprender. Um dever provoca uma obrigação, bem como um direito provoca uma atitude. Se uma pessoa tem o direito a não ser discriminada pela cor da pele, para proteger esse direito cumpre manter uma atitude de integração, inclusão e naturalização da cor da pele no conjunto da sociedade. Por outro lado, se uma pessoa tem o dever de não discriminar pela cor da pele, essa mesma pessoa tem a obriga de integrar, incluir e naturalizar todas as pessoas com independência da cor da sua pele no conjunto da sociedade. As atitudes dependem da vontade das pessoas, porém as obrigas impelem ao seu cumprimento. Se tenho boa vontade, respeito o direito à não discriminação pela cor da pele, mas se tenho o dever de não discriminar e incumpro esse dever, serei punida pela lei. De maneira que os deveres são o modo de assegurar os direitos. Por isso cada direito deve levar associado o dever que estabelece a sua garantia de defesa.

o-carrabouxoPor isso perante a questão de se o funcionariado da Administração pública deve conhecer o galego para poder empregá-lo com a cidadania galego falante, a resposta é que sim, a ninguém escapa que é obrigado conhecer uma língua para poder empregá-la e que temos o direito a sermos atendidas na nossa língua. Mas perante a questão de se é legal obrigar alguém a conhecer galego, quando nem sequer os galegos temos esse dever, a resposta é que não. A Constituição espanhola não estabelece o dever de conhecermos galego, portanto não temos a obriga de aprendê-lo nem nós, galeg@s, nem ninguém. Salta à vista que os nossos direitos não estão bem defendidos pela Constituição porque esta não estabelece a garantia do nosso direito, que é o dever de conhecermos a nossa própria língua.

Além desta evidência jurídica, a teimosa e variada realidade insiste em ir contra a lei espanhola. No século XXI galegos, bascos e catalão-valencianos persistimos em empregar as nossas línguas nativas para tudo aquilo que precisamos e, por isso mesmo, apesar de que a teoria espanhola está bem definida, na prática é preciso aplicar outras normas para efetivar a comunicação da Administração com as diferentes populações. Este paradoxo provoca no Reino a criação de uma borbulha jurídica arredor do emprego administrativo das línguas diferentes do castelhano. A jurisprudência estabelecida pelos Estatutos, leis e decretos nas Comunidades Autónomas abriu um leque de normas contraditórias com a Constituição, mas necessárias para concederem espaço às línguas nativas por razão de eficiência, ou seja, para a fluidez da comunicação e resolução dos trabalhos reconhecendo assim que, na realidade, o castelhano não é a única língua que a população espanhola deveria conhecer e empregar. Durante décadas, o carácter oficial e a eficiência das línguas nativas foram suficientes para alimentar essa borbulha, para construir a ilusão de que temos os direitos linguísticos garantidos e obviar a tremenda clareza e contundência, diria que brutal, do artigo 3.1 da CE que nos deixa na mais absoluta indefensão.

O próprio Tribunal Constitucional tem legislado ao longo de décadas contra esse artigo da Constituição, como bem resume este completo texto1 do letrado do Parlamento catalão, Joan Ridao, escrito da perspetiva da defesa da língua catalã, onde se podem ler várias sentenças do TC em que se valoriza a exigência do catalão nas provas à função pública com motivo da eficiência da administração autónoma. Nesse artigo comprova-se a deriva das sentenças do próprio Tribunal Constitucional o qual, por estes e outros motivos, já reuniu méritos suficientes para ser chamado de Tribunal Anticonstitucional.

Porém, também há casos da aplicação direta do artigo 3.1. No caso galego temos o exemplo da Lei de Normalização Linguística do ano 1983 assinada pelo daquela presidente da Xunta, Gerardo Fernández Albor, da Alianza Popular (depois PP), em cujo artigo primeiro se estabeleceu explicitamente o dever de conhecer o galego, facto que foi impugnado nesse mesmo ano pelo Presidente do Governo, o socialista Felipe González, e finalmente caiu da lei com a resolução do TC em 1986. Desde aquele momento ficava claro que os galegos não teríamos o dever de aprender a nossa língua porque esse dever era inconstitucional. Isto continua a ser assim hoje. Acabando a segunda década do século XXI, as galegas ainda não temos o dever legal de conhecer a nossa língua.

Para sairmos do eterno retorno da judicatura espanhola é imprescindível reconhecer que a solução não está na prolongação das mentiras do TC, nem na continuação de normas que contradizem as leis básicas. Porque essas falhas e enredos do sistema jurídico são as que permitem que os partidos de extrema direita proponham leis que deitam abaixo os nossos direitos, que são legítimos, mas que na prática não têm garantias. Cumpre impugnar a maior como tem feito desde o começo o reintegracionismo galego, cairmos na conta de que a Constituição espanhola não nos defende bem como galeg@s, nem nos reconhece como nação, nem defende que a cidadania galega, nem a catalã-valenciana, nem a basca, tenhamos o dever de conhecer as nossas línguas. O artigo 3.1 da CE estabelece cidadãos de primeira e de segunda categoria ao ignorar os deveres dos nativos de outras línguas, e determina uma clara preeminência da língua castelhana que está jurídica e politicamente hiperdefendida e garantida. O que é claramente antidemocrático.

Conclusão: O Estado espanhol tem-se criado a si próprio um grave problema desde o seu texto constitucional por não querer reconhecer nele as diferentes nações do seu território, nem estabelecer os mesmos deveres e direitos para toda a cidadania. Esse problema tem só duas vias de saída, a da borbulha jurídica atual que permite um alto nível de arbitrariedade como estamos a ver no caso catalão, ou a da dissolução completa da jurisprudência sobre línguas para começar de zero. A primeira é uma via morta, de resistência passiva, que permite ataques aos direitos linguísticos por parte das forças políticas menos democráticas. A segunda é a via de futuro, a democrática, a que requer mudanças fundamentais. Os partidos galeguistas, novos e velhos, têm de exigir por lei o dever de sabermos Galego para todas as pessoas na Galiza e admitir o galego em todas as suas formas, variantes e normas. O mesmo devem fazer os partidos soberanistas de territórios com língua própria em todo o Estado. Depois poderemos exigir o conhecimento da língua nativa nas provas à função pública e a qualquer outro emprego. Naturalmente, isso implica a anulação do artigo 3 da Constituição espanhola, o qual deixaria sem efeito a política linguicida do Estado. Se essa proposta de lei da extrema direita vai para a frente, terá triunfado a política do desrespeito e da indefensão para quem não tem garantidos os direitos mais elementares. E ficará cada vez mais claro aonde nos leva o projeto do Reino da Espanha.

Notas:

1 Quero agradecer à prof.ª Alba Nogueira a amabilidade de me ter informado deste artigo.