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O modelo fascista da escola franquista (filme: ‘O mestre’)

Este mês de julho faz oitenta anos do golpe de estado franquista, que os que o levaram a cabo denominaram com o indignante nome de “Cruzada de Liberação”. Nome paradoxal, pois precisamente com este terrível golpe terminaram as liberdades e terminara a vida de milhares de pessoas, algumas das que a dia de hoje ainda não sabemos onde estão soterradas. O gravíssimo ataque contra a legitimidade do governo republicano instaurou um sistema educativo, cujo “modelo” de escola queremos comentar hoje, e nos gostaria que nunca mais voltasse a existir neste país.

Típica sala de aulas franquista
Típica sala de aulas franquista

O franquismo, desde o primeiro dia, realizou o mais poderoso intento doutrinador de toda a nossa história. A razão é que a preocupação escolar do regime era quase que exclusivamente ideológica e política. Desde o primeiro momento, a função mais relevante encomendada à escola era contribuir à dominação e à reprodução social e política por meio do doutrinamento nos “valores” próprios do conjunto das forças do bloco vencedor na guerra civil. Os instrumentos: o ensino religioso, onde a religião deve ser entendida militante e ultracatólica; a patriótica, fascistoide e maniqueia, de vagos sonhos imperiais; e a cívica, sentimentaloide e ultraconservadora. Todas elas, por suposto, como se entendem por costume hispana, simbolicamente entrelaçadas e dirigidas à mesma finalidade.

Porque o que nas escolas se ensina é o reflexo da economia, das relações sociais, da política, da história, da filosofia, da religião e de outros elementos do contexto que produzem o precipitado final dum determinado universo ideológico, mais ou menos organicamente estruturado. Neste senso, o sistema de ensino amplamente entendido, como diz Apple, é “uma conjugação da sociedade, ou melhor, a sociedade mesma”. E, desde o golpe de estado havia menos sociedade e sim muito mais uma descarada e exacerbada vontade doutrinadora. Finalidade que não era outra que aquela meridiana e solenemente propugnada em 1942, entre as paredes do claustro da Universidade de Barcelona, pelo inefável ministro Ibáñez Martín: “Uma vez mais afirmo paladinamente que a base do regime não está nos grandes problemas materiais. O regime há de apoiar-se na alma de todos os cidadãos, na capacidade decidida e heróica de todos os espíritos…A política inescusável, a grande política do nosso Movimento está vinculada à ação educadora, que de acordo com os princípios substanciais do ensino, se exerça no coração das crianças e dos jovens. Sem isto há carecer de sentido o Movimento e seria impossível a permanência do Regime”.

Fotograma do filme 'O mestre' (1957)
Fotograma do filme ‘O mestre’ (1957)

Muitos sabemos que tão explícito, coerente e paladino programa de “ação educadora” fez acordar instantaneamente grandes vocações dormidas, e uma legião de ilustres “pedagogos” trabalhou para oferecer os seus leais serviços. Depois de depurar tudo o depurável (isto é, todo escrito ou pessoa, que tivesse “matiz socialista, galeguista ou comunista” ou que houvesse seguido “o ideário perturbador das mentes infantis”), nas escolas primárias, nos liceus, institutos e colégios, nas escolas normais ou do magistério, e até em muitas cadeiras universitárias se ensinava seguindo esta aberrante ortodoxia metodológica, por chamá-la de alguma maneira, expressada por boca de um destacado catedrático de história valenciano: “O mestre há de proceder de modo apriorístico, escolhendo factos não só em função do seu valor histórico absoluto, senão do seu valor para a formação no senso patriótico nacional que preconizamos. Há de fazer ressaltar de modo interessado os factos que amostrem os valores da raça, silenciando outros que, ou não a enobrecem, ou podem ser interpretados torcidamente. Trata-se, repito, de fazer espanhóis que sintam a história e não de formar homens que conheçam plenamente a história”. Palavras que só por sim soas se comentam. Com esta imaginativa proclama de exacerbado maniqueísmo consagraram-se “os métodos educativos da Espanha tradicional”: a rejeição absoluta das “doutrinas pedagógicas do estrangeiro”, porque são, segundo dizia o BOE, “hipócritas, estranhas, exóticas e despóticas”; outorgar destacadíssimo lugar ao sistema, “clássico na tradição espanhola”, da repetição para “obter a maior fixação e solidez nos conhecimentos”, assim como o método das concentrações e o da concentricidade do ensino religioso.

Por isto, Sáinz Rodríguez arengava os mestres, aquela concebida “nova milícia da cultura”, não se tratava de afirmar essa ideia liberal e rousseauniana de que há que respeitar a consciência e a liberdade da criança e do mestre, senão de pensar em que a ideia contrária é precisamente “o eixo de toda a filosofia da educação patriótica”. As crianças e jovens do pós-guerra tiveram que crescer assim, inevitavelmente, na mais completa autarquia. Dentro, é bem certo, dos temíveis efeitos da autarquia económica, também política; embora, sobre tudo, imersos numa cabal autarquia intelectual e ideológica.

Embora não ser o mestre do filme, que escolhi para o presente comentário, um docente modelo exato do sistema educativo franquista, pois é uma boa pessoa, que trata bastante bem aos seus alunos, também quero amostrar que com tudo, houve mestres que, a pesares de todo o tipo de pressões, não levaram para a frente o modelo educativo fascista ao cento por cento. Unicamente o levaram aqueles que acreditavam plenamente nos princípios do nacional-catolicismo e nos da Falange e do Movimento.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

  • O MESTRE 1957 Cartaz0Título original: El maestro (O mestre).
  • Diretores: Aldo Fabrizi e Eduardo Manzanos Brochero (Espanha, 1957, 94 min., preto e branco).
  • Roteiro: Mário Amendola, Aldo Fabrizi e José Galhardo, segundo o romance de Luís Lucas Ojeda.
  • Fotografia: António Macsoli e Manuel Merino. Música: Carlo Innocenzi e Isidro B. Maiztegui.
  • Nota: Olhar entrando em: https://www.youtube.com/watch?v=32G2evH77yE
  • Atores: Aldo Fabrizi, Alfredo Mayo, Mary Lamar, Félix Fernández, Julio Sanjuán, José Calvo e Mercedes Barranco.
  • Argumento: Dom João, mestre nacional de uma aldeia galega e pintor, é deslocado pelo Ministério à capital, onde expõe os seus projetos sobre a criação de uma grande escola de pintura. Já na cidade, o seu único filho, João, de oito anos de idade, sofre um acidente mortal. A partir deste momento, os sonhos e projetos do mestre sofrem um varapau. Embora, um dia aparece na sua sala de aulas uma nova criança que ocupa a mesa do seu filho e o mestre recupera a alegria e a esperança.

PROGRAMA DIÁRIO DE UMA ESCOLA NO FRANQUISMO:

De manhã iniciava-se o dia com o ato de içar a “Bandeira da Pátria” (a mesma que temos hoje, e que é a da infame família borbónica) e, braço em alto e impassível o gesto, com o canto simultâneo de alguma das versões autorizadas do hino nacional, que muitas vezes era o do poeta fascista Pemán, e que era seguido de outros igualmente patrioteiros e militaristas, como os da Falange “Cara al sol”, “Prietas las filas” ou “Montañas nevadas”, e às vezes o hino da Legião. Ao entrar na sala de aulas saudava-se com “Ave Maria”, eram entoados cantos religiosos e, ao meio-dia, rezava-se o “Ângelus”. As crianças estudavam as lições em classes presididas pelo “Crucifixo” flanqueado pelos severos retratos de Franco e José António, com os métodos e conteúdos nacional-católicos típicos. De forma obrigatória, todos os dias os escolares tinham que fazer um exercício escrito e ilustrado sobre um tema religioso, patriótico ou cívico. Para os meninos, por disposição legal expressa, todo devia lembrar-lhes a milícia, às meninas, todo o ambiente tinha que levá-las à “feminidade mais rotunda, com labores e ensinos apropriados para o lar”. Quando na lição de geometria se tratava de ensinar o círculo, este era representado com uma esquadra de “Flechas y Pelayos”; na lição de gramática, os nomes próprios, o singular e o plural, o sujeito, o verbo e o predicado, aprendiam-se a partires de edificantes textos relativos a gloriosos factos da “Cruzada” ou da história imperial de Espanha, “unidade de destino no universal”, reforçados com as ilustrações mais chamativas e peregrinas.

ESCOLA FRANQUISTA Livro CatecismoAlgumas tardes, e os sábados sempre, as crianças assistiam às leituras bíblicas e, em ocasiões às práticas catequéticas ou apostólicas da “Santa Infância” ou do “Apostolado da Oração”, Escolanias ou Acolitados, ademais de realizar o estudo da história sagrada e do catecismo, assim como o rezo do “Santo Rosário”. Os domingos e “dias de guardar” eram conduzidos pelos mestres, em “ordenada corporação”, como exigia a circular correspondente, à missa paroquial. Embora, tudo isto não era suficiente. O profundo patriotismo católico que era necessário infundir nas novas gerações exigia mais. Assim, entre as atividades mensais ou dispersas ao largo do curso, realizavam os sacrifícios pelas intenções do Pontífice, o Via-crúcis, a Semana do Seminário, o mês das flores em maio, os exercícios espirituais, a preparação para a primeira comunhão e a da confirmação. Um currículo tão “profundo” ainda se completava com as festas do “Dia do Caudilho”, a “Festa da Raça ou da Hispanidade”, a de Santa Teresa (só para as meninas), os aniversários da morte de José António Primo de Rivera, a de “Matias Montero ou do Estudante Caído”, o Dia da Vitória, o da unificação, o da Independência de Espanha, o dia de S. Fernando (só para meninos), S. Pedro e S. Pablo, a Consagração do Sagrado Coração de Jesus, o Domund, o Dia dos Caídos, o Dia do Papa, o Dia do Bispo, o Dia do Pároco… mas do Dia do Sacristão não se encontrou qualquer constância nos arquivos.

Este “currículo” tão especial foi tanto mais rígido, quanto mais próximo de 1939 nos situemos. Chegou quase a ser cumprido na sua totalidade até os anos sessenta, com ritos e retórica oca. Por fortuna, um povo submetido e abrumado por tanta palavrearia, soube preservar a sua consciência das cousas por puro senso comum ou por mero instinto de sobrevivência perante tal realidade. E as nossas crianças atendiam mais e com grande ansiedade ao troço de queijo amarelo e cremoso “dos americanos”, repartido algumas tardes nas escolas, ou à hora em que se podiam deitar na taça umas colheres de leite em pó também enviado pelos americanos, bons que eram eles, que, no lugar habitual de bombas, mandavam queijo e leite.

O “nacional-sindi-catolicismo” foi uma ideologia com um grande esquematismo simbólico, simplista e, por vezes, contraditório, claramente maniqueu e de uma rudeza verdadeiramente esmagadora, em que se podem descobrir especialmente operantes componentes de mentalidades típicas de ordem, tradicionais, sonhos fascistoides e conteúdos e recursos ocultos de santificação do “status quo”, do que existia; ingredientes que, junto com um exacerbado e xenófobo nacionalismo e uma virulenta rejeição do liberalismo, a democracia, o socialismo, o comunismo e o anarquismo, formavam um conjunto ideológico orgânico, estruturado ao redor da interpelação religiosa católica na sua versão mais ultra. Uma espécie de “magma”, sem vigor e sem vigência intelectual alguma, mas foi ao cabo “ideologia”.

Os títulos dos livros escolares da escola franquista são já de por si muito significativos. Entre eles encontram-se Leituras Graduadas, Glórias imperiais, A Nova Emoção de Espanha, Pátria, o Livro de Espanha, O rapaz espanhol, todos estes para meninos, e para meninas: Guirnaldas da História, Enciclopedia Elemental da Sección Femenina, Fabiola e outros. Naturalmente, todos eles escritos em castelhano.

TEMAS PARA REFLETIR E REALIZAR:

Servindo-se da técnica do Cinemaforum, analisar e debater sobre a forma (linguagem cinematográfica: planos, contra-planos, panorâmicas, movimentos de câmara, jogo com o tempo e o espaço, truques cinematográficos, etc.) e o fundo do filme antes resenhado.

Organizamos nos estabelecimentos de ensino uma amostra sobre uma escola típica da etapa franquista, com desenhos, fotos, cartazes, frases, lendas, textos e uma exposição de livros escolares da época. A amostra pode completar-se também com documentos sobre a repressão exercida na Galiza contra os mestres republicanos e galeguistas. E, em concreto, contra os que integravam a ATEO (Associação de Trabalhadores do Ensino de Ourense).

Podemos realizar um jogo dramático com a participação de escolares e docentes, representando o funcionamento de uma escola durante o franquismo, típica até a promulgação em 1970 de uma nova lei educativa, sendo ministro Villar Palasí, e que reformou profundamente a educação no país, deitando fora muitos dos métodos e estratégias próprios da escola franquista e nacional-católica.

 

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