O marechal Ney entra em clausura (II)

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Por Joám Lopes Facal

Depois de umha breve pausa, o marechal dirigiu-se à comunidade por meio do intérprete, rogando-lhe cortesmente que se aproximassem e formulando, de passagem, algumha pergunta sobre o regime espiritual e material do mosteiro. Sem mais, dirigiu-se às religiosas para perguntar-lhes se estavam à vontade no convento, requerendo-as para se manifestarem em liberdade e sem temor. Desde já, prosseguiu, ficava à espera das respostas. Houve depois um breve refrigério de cortesia e, sem mais, o marechal abandonou o mosteiro rumo ao de Santa Clara, acompanhado do séquito e dos padres vicários beneditinos presentes revestidos de cogula, essa capa rematado em capuz próprio das ordens contemplativas. A violaçom da clausura comoveu a cidade como um fatal agoiro.

Dous dias depois, a cinco de maio, a abadessa recebia novo ofício do Director Geral da polícia informando-a que, “em estrito cumprimento da ordem da Sua Excelência o senhor marechal do Império”, as religiosas, dona Ventura Pinheiro das Casas, filha do marquês de Bendanha, e dona Antónia Bermúdez de Castro, também de família fidalga, deviam ser transferidas no mesmo dia para um domicílio particular. Confiava o Director Geral no diligente cumprimento da ordem emitida, “com a submissom, pontualidade e obediência devida polo seu instituto às autoridades legítimas” e encarecendo à abadessa proceder com “todo o amor, caridade e complacência devida às referidas religiosas, em atençom à sua condiçom de consagradas, de cidadás, e de senhoras de ilustre berço”.

As duas monjas insubmissas eram novas em idade ainda, mas habituadas já à disciplina conventual. Contava dona Ventura trinta e três anos e dona Antónia trinta e seis. Levava dezesseis anos de professa a primeira e dez a segunda. Duas adolescentes quase quando ali ingressaram, acompanhadas talvez de umha aia solícita e confidente como era usual na época. As razons da rebeldia ir-se-iam desvendando no curso do processo, mas o seu fundamento é fácil de adivinhar: as cobiças por herdança podiam alcançar o grau de crueldade nas grandes famílias.

Ilustre berço era um título de dignidade que dom Pedro Bazán e Mendoza reconhecia às professas junto com a sua qualidade de cidadãs livres. Alto era, decerto, o berço de dona Ventura Pinheiro das Casas, filha -se o meu cálculo nom é errado- do sétimo Marquês de Bendanha, dom António Maria Piñeyro das Casas, Ulhoa e Maldonado (1771-1838).

Que domicílio particular terá acolhido dona Ventura no dia cinco de maio de 1809 à tarde quando abandonava por vontade própria o seu mosteiro para recobrar a inquietaçom da liberdade? Talvez nunca o saibamos. É pouco verosímil que fosse o orgulhoso Paço de Bendanha que preside a Praça do Toural desde 1759. A mansom, atribuído ao grande Sarela, teria servido de moradia ao quinto Marquês de Bendanha, Andrês Vicente Pinheyro de Ulhoa1 (1739-1782), se fiamos na cronologia genealógica2. Andrês Vicente era avô de Ventura -acho eu- e testemunha habitual documentada -com outros eminentes fidalgos- nas solenes cerimónias de voto das novicias que ingressavam em Sam Paio. Paradoxos do destino. Nom pudemos averiguar, porém, quem ocupava a arrogante mansom do Toural quando dona Ventura mais a precisava. Os tempos eram de mudança3.

Menos sabemos ainda de dona Antónia Bermúdez de Castro, a nom ser o nome de um irmão, Vicente António Bermúdez de Castro, que assoma fugazmente no relato de Colombás. Os ilustres apelidos de dona Antónia podem proceder talvez dos Bermúdez de Castro e Aldao com paço em Gondar, perto de Catoira, cuja saudosa imagem de decadência seduziu o objectivo da cámara de Ruth Matilda Anderson em 22 de setembro de 19244. Ou de outro ramo, talvez, de um solar tam antigo5 e diverso. O apelido Bermúdez, aliás, nom é insólito na Galiza. Este era o segundo apelido do meu pai por parte de mãe, Carme Bermúdez Seoane, originária da aldeinha mugiana de Fuminheu.

Gostaríamos conhecer de perto os antecedentes que precipitárom a renúncia ao claustro das duas consagradas, a biografia do seu desapego e ruptura final. Tam breve e dolorosa em dona Ventura, tam exasperada e definitiva em dona Antónia.

As esquecidas histórias da longa fileira de enclaustradas que povoárom os numerosos mosteiros de clausura abundam em sórdidos episódios de abuso de pátria potestade e coerçom familiar. Evoca o padre Colombás o caso da desventurada professa dona Maria Isabel Pardo Suárez de Deza e Oca -umha monja fidalga mais- nascida em 1738 no Porto Marim, filha do senhor de Portomenhe e neta do senhor de Bóveda. A coitada ficou orfa e, em 1753, com apenas quinze anos, solicitou o ingresso no mosteiro de Sam Paio para fugir da intolerável pressom do irmao e um tio dos que dependia “em regime de custódia”.

Achamo-la em 1778 recluída no Convento das Bárbaras da Corunha “por via de depósito”. O pequeno cenóbio corunhês, originário do século XV, era na altura convento de clausura da ordem franciscana. Ignoramos as circunstáncias que pudessem explicar a transferência de Maria Isabel Pardo do mosteiro de Sam Paio para o das Bárbaras; itinerário inverso ao seguido por Antónia Bermúdez poucos anos depois. O que si sabemos é que, já com sinais de loucura, a desventurada reclusa apelou às suas influências perante a corte de Carlos III, o qual decidiu instar a nulidade dos votos emitidos por Maria Isabel através do seu embaixador em Roma.

A moçom real atingiu a aprovaçom de Pio VI o qual, em breve de seis de julho de 1778, procedeu a decretar a nulidade do voto por causa de fingimento de vontade e falta de íntimo consentimento. Contava a coitada na altura quarenta anos de idade e levava vinte e cinco de condena a reclusom perpétua. Relata Colombás a insólita crueldade do irmao e o tio até conseguirem enclaustrar a coitada, obrigada a fugir de um regime de vida doméstica qualificado por Colombás de “quase servil”. Os “tutores” nom conseguírom, nom obstante, forçar Isabel a renunciar aos seus direitos patrimoniais. Foi este facto um argumento decisivo na sentença de nulidade dos votos. A pequena história de Isabel é umha mais da história da ignomínia provocada pola perversa conjugaçom de dominaçom masculina, abjecta cobiça e tirania religiosa sobre as consciências.

Michel Ney, duque d’Elchingen e príncipe de Moskowa, portava na sua mochila militar algo mais do que destruiçom e morte. Era portador também das luzes que seduziram a brilhante geraçom universitária dos José de la Vega, Sánchez Boado, González Varela e Bazán e Mendoza. A alegria libertária dos ilustrados foi, no entanto breve; os sinos de Compostela marcavam hora diferente da dos prezados relógios estilo império dos salons de Paris. Mas, a breve visita a Sam Paio de três de maio, ia marcar para sempre a vida de duas mulheres solitárias.

 

Notas:

1 As propriedades de Andrês Vicente Pinheyiro e Ulhoa, marquês de Bendaña estendiam-se polas províncias de Lugo, Mondonhedo, Santiago, Betanços e Tui, e ascendia em 1764 a 111.073 rs. brutos. Pegerto Saavedra: “La vida en los pazos gallegos: entre la literatura y la historia”

4 Unha mirada de antano. Fotografías de Ruth Anderson em Galicia, Fundación CaixaGalicia, 2010.

5 http://www.xenealoxiasdoortegal.net/ortegal/bermudezcastro.htm

 

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