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Influência importante do ambiente na educação e na socialização, com os filmes ‘O enigma de Kaspar Hauser’ e ‘Nell’

Encontrámo-nos em período de férias dos nossos escolares. Que teria que ser utilizado para ensinar às mesmas, de forma lúdica, agradável e criativa, a saber desfrutar do tempo de lazer, e para fomentar em crianças e jovens passatempos positivos (musicais, lúdicos, literários, artesanais, na natureza, etc.). É por isto que, em sucessivos depoimentos da minha série, centrarei os meus comentários, apoiados em vários filmes adequados, na importância que o ambiente tem na educação e socialização das crianças. Deve ressaltar-se o decisivo que é o relacionamento familiar na vida de uma criança como o alicerce da construção do processo de ensino-aprendizagem. Os especialistas em educação e psicologia vêm estudando ao longo dos anos a influência da família no desenvolvimento da criança, antes mesmo do seu nascimento, mas infelizmente, o que se têm percebido na nossa sociedade contemporânea, é que muitas famílias, talvez por desconhecerem a real importância do seu papel como formadora de princípios e aprendizados, tem deixado, exclusivamente, esta função nas mãos da escola. Embora saibamos que a escola pouco pode fazer pelo seu aluno se não houver uma participação eficiente dos familiares. A aprendizagem deve começar no lar, com atividades básicas nas quais a família passa o sentido do que é o respeito, o amor e a solidariedade, o que é essencial para a convivência humana e social. A criança quando chega à escola traz consigo aspetos constitucionais e vivências familiares; porém é peça fundamental no seu desenvolvimento o ambiente escolar.

A família é o grupo primário do qual o indivíduo participa. É na dinâmica familiar que se impõe determinados tipos de vínculos particulares, e são esses vínculos que irão interferir na formação da identidade do sujeito e, quando somados aos fatores genéticos e sociais, vão-se formando as primeiras aprendizagens no âmbito familiar, e serão modeladas ao longo da vida. O desenvolvimento humano é um fenómeno complexo, compreendendo um processo de transformação que ocorre ao longo da vida e sendo multideterminado por fatores próprios dos indivíduos e por aspetos mais amplos do contexto social no qual eles estão inseridos. E entre os fatores que influenciam diretamente o desenvolvimento do indivíduo, está o ambiente familiar. Tudo começa em casa, a família é a primeira referência de qualquer pessoa, e deve ser reconhecida como um dos pilares na formação do indivíduo. É na relação familiar que a criança vai experimentar o real significado de pertencer e se diferenciar. Pertencer significa participar, saber-se membro desta família, partilhar as suas crenças, valores, regras, mitos e segredos. Diferenciar refere-se à afirmação da sua singularidade, à sua individuação e ao seu direito de pensar e expressar-se, independentemente dos valores defendidos pela sua família. É no relacionamento familiar que a criança vai descobrir quem ela realmente é, ou seja, a sua identidade pessoal. Esta descoberta faz-se logo nos primeiros anos de vida. Devido a diversos fatores sociais e económicos, a família da atualidade tem sofrido diversas transformações: o processo de urbanização e industrialização, o avanço tecnológico, o incremento das demandas de cada fase do ciclo vital, uma maior participação da mulher no mercado de trabalho, o aumento no número de separações e divórcios, a diminuição das famílias numerosas, o empobrecimento acelerado, a diminuição das taxas de mortalidade infantil e de natalidade, a elevação do nível de vida da população, as transformações nos modos de vida e nos comportamentos das pessoas, as novas conceções em relação ao casamento, as alterações na dinâmica dos papéis parentais e de género, etc. Tudo isto determinou em geral também o tipo de relacionamento familiar, pois pais com poder económico mais baixo dedicam menos tempo em brincar, interagir e conversar com os seus filhos. Já os pais com um nível económico mais alto, normalmente, mas não sempre, participam mais da vida dos filhos.

Os dous filmes que escolhi desta vez, para apoiar os meus comentários, apresentam casos extremos, pois em ambos existe uma ausência quase que total da família, e os rapazes protagonistas de ambas as fitas, Kaspar e Nell, não conseguiram a sua socialização, que tão importante é para a educação e vida posterior. No caso de Kaspar foi um caso real, no da rapariga Nell é figurado e fictício.

FICHA TÉCNICA DOS FILMES:

  1. Título original: Kaspar Hauser-Jeder für sich und Gott gegen alle (O enigma de Kaspar Hauser).
  • ENIGMA KASPAR HAUSER CartazDiretor: Werner Herzog (Alemanha, 1974, 110 min., cor).
  • Roteiro: Werner Herzog, segundo o romance de Jakob Wassermann.
  • Música: Florian Fricke, com peças de Pachebel, Albinoni, Orlando di Lasso e Mozart. Fotografia: Jörg Schmidt-Reitwein e Klaus Wyborny.
  • Produtora: ZDF e W. Herzog Filmproduktion.
  • Prémios: Prémio da FIPRESCI e Prémio do Júri Ecuménico em Cannes (1975).
  • Nota: Pode ser visto em Youtube.
  • Atores: Bruno S. (Kaspar Hauser), Walter Ladengast (Professor Daumer), Brigitte Mira (Kathe, criada), Willy Semmelrogge (diretor do circo), Michael Kroecher (Lord Stanhope), Hans Musäus (homem desconhecido), Marcus Weller, Gloria Doer (Frau Hiltel), Volker Prechtel (Hiltel o guarda da prisão), Herbert Achternbusch (o hipnotizador bávaro), Wolfgang Bauer, Wilhelm Bayer (o rapaz da granja), Franz Brumbach, Johannes Buzalski e Helmut Döring (o pequeno rei).
  • Argumento: Um homem jovem chamado Kaspar Hauser aparece de repente na cidade de Nuremberga em 1828, e mal consegue falar ou andar, além de portar um estranho bilhete. Logo é descoberto que a sua aparição misteriosa se deve ao facto de que ele ficou trancado toda a sua vida em um cativeiro, desconhecendo toda a existência exterior. Quando ele é solto nas ruas sem motivo, muitas pessoas decidem ajudá-lo a se integrar na sociedade, mas rapidamente Kaspar se transforma numa atração popular.

Trechos do Filme:

  1. Kaspar Hauser – A Educação:

ENIGMA KASPAR HAUSER Foto04Este trecho apresenta cenas de adaptação ao comportamento social da sociedade local. Aprender a andar, falar, escrever e se alimentar. De acordo com Aristóteles, “Aprende-se a fazer fazendo”. A educação é o processo que o homem inventou para fazer com que esse ser totalmente incompetente e absolutamente dependente ao nascer se torne um ser humano adulto competente para viver.

  1. Kaspar Hauser – Kaspar e a compreensão do mundo:

Neste trecho, Kaspar Hauser descreve as sensações que sentia quando estava no quarto, na torre, e compara com a sensação do espaço fora dela. Novamente nos reporta ao problema levantado pelo filósofo Platão, sobre do mundo sensível e o inteligível. A construção do conhecimento platónico é uma conjugação de intelecto e emoção, de razão e vontade; a episteme é fruto de inteligência e de amor.

  1. Kaspar Hauser – A Perplexidade diante do estranho:

Esta cena mostra Hauser sendo encontrado pelos moradores, numa praça de Nuremberga, com apenas uma carta endereçada ao capitão da cidade, explicando parte da sua história, um pequeno livro de orações, entre outros itens que indicavam que ele provavelmente pertencia a uma família da nobreza. A nova realidade de Hauser deixava-o de olhos vermelhos, ofuscados pela claridade, com a qual não era acostumado, parecia libertado da Caverna de Platão (alusão à Alegoria da Caverna).

  1. Kaspar Hauser – Socialização:

ENIGMA KASPAR HAUSER Foto6Personagem real e enigmático, encontrado em Nuremberga, não sabia falar e nem andar, nem mesmo demonstrava um comportamento humano. O seu grande enigma mantém-se até hoje, pois não se descobriu a sua origem. Este trecho mostra um jovem acorrentado em um calabouço, sem contato com a sociedade, alimentado por um homem misterioso. Encontramos reflexões para compreensão desse fato na tese de Aristóteles que “o homem é um animal social” dizendo que o homem é um ser naturalmente carente, que necessita de coisas e de outras pessoas para alcançar a sua plenitude.

  1. Kaspar Hauser – O primeiro contacto com a sociedade:

Neste trecho, o misterioso homem retira Kaspar do calabouço durante a noite e deixa-o numa praça, numa cidade próxima, com uma carta para o oficial da guarda. Segundo Rousseau, o homem não é um ser social, é um ser duplo. Tem uma realidade individual e outra social, sendo que, para entrar na sociedade, precisa fazer um pacto social que é uma síntese das vontades gerais.

2.Título original: Nell.

  • NELL Capa DVD00Diretor: Michael Apted (EUA, 1994, 115 min., cor).
  • Roteiro: William Nicholson e Mark Handley.
  • Música: Mark Isham. Fotografia: Dante Spinotti.
  • Produtora: 20th Century Fox. Prémios: O filme recebeu uma indicação ao Óscar, na categoria de melhor atriz (Jodie Foster), além de receber três indicações ao Globo de Ouro de melhor filme – drama, melhor atriz – drama (Jodie Foster) e melhor trilha sonora no ano 1994.
  • Atores: Jodie Foster (Nell), Liam Neeson (Jerome Lovell), Natasha Richardson (Paula Olsen), Richard Libertini (Alexander Paley), Nick Searcy (Todd Peterson), Robin Mullins (Mary Peterson), Jeremy Davies (Billy Fisher), O’Neal Compton ( Don Fontana) e Usher (Jerry, o médico ).
  • Argumento: Relata a história fictícia de uma moça que é encontrada numa casa afastada da cidade. Apesar de não poder ser considerada uma criança selvagem, ela não aprendeu a falar pois a mãe foi encontrada morta e tudo indicava que sofria de algum tipo de distúrbio neurológico, mas descobriu-se que fora efeito da criação isolada (após a morte de sua mãe e da sua irmã) e aprendizado da linguagem afásica de sua mãe, NELL Fotopossível vítima de um AVC. O filme trata de uma mulher de cerca de 30 anos que foi criada na floresta longe de toda a sociedade e civilização, tendo contacto somente com a sua genitora e sua irmã gémea falecida entre 6 a 10 anos de idade. A mãe de Nell sofreu derrame e por isso não possuía uma dicção adequada, era afásica, e escondia-se do “mundo” provavelmente (Não se pode afirmar por se tratar de uma hipótese) por ter sido vítima de estupro e não possuía parentes para a amparar. Sendo assim, Nell viveu por trinta anos uma vida simples, e possuía um dialeto próprio inspirado nas dificuldades da fala da mãe e da própria vivência da moça, até ser descoberta pelo Dr. Jerome Lovell no momento em que ele foi constatar a morte de sua mãe. Daí, Nell tornou-se um caso curioso e interessante para este doutor e tantos outros que ele solicitou ajuda e o filme concentra-se na decisão: – O que fazer com Nell ? Ela era capaz de viver sozinha na floresta? Deveria ser internada num hospital? Era autista, deficiente mental, louca?… A trama gira em torno desta decisão e os médicos Dr. Jerome Lovell e Dr.ª Paula (psicóloga) tentam defender as suas opiniões, inicialmente antagónicas, mas durante a observação mudaram de opinião e tentaram um consenso. A aproximação de Nell provocou no médico e na psicóloga uma imersão para si mesmos, quando eles passaram a vislumbrar as possibilidades diferentes que eles próprios poderiam ter em relação à sua própria vida. Na penúltima cena, os personagens estão no tribunal decidindo o que fazer da vida da “Mulher Selvagem” quando Nell decide expressar-se no seu dialeto e o Dr. Lovell serve de intérprete. Neste momento fica clara a desenvoltura, a maturidade e a autonomia dela. Sendo assim, a personagem principal consegue provar que é capaz de viver sozinha e na cena final, ela já está na sua casa na floresta comemorando o seu aniversário com os amigos.

A DIFÍCIL SOCIALIZAÇÃO DE KASPAR E NELL:

Segundo a professora brasileira Mª Clara Lopes Saboya, o caso de Kaspar Hauser serve para ilustrar o erro básico de uma organização social fundada sobre os princípios do racionalismo positivista. Mostra-nos que a “humanização” do homem, entendida como socialização, não é uma decorrência biológica da espécie, mas consequência de um longo processo de aprendizado com o grupo social. Através desse processo, o indivíduo integra-se no grupo em que nasceu, assimilando o conjunto de hábitos e costumes característicos desse grupo. Participando da vida em sociedade, aprendendo as suas normas, valores e costumes, o indivíduo está-se socializando, reprimindo as suas características instintivas e animais e desenvolvendo as sociais e culturais, fazendo, assim, a “passagem da natureza para a cultura,” aprendendo a ver com os “óculos sociais,” tornando-se, como nos disse C. Dickens, “um animal de costumes.” Kaspar Hauser nunca se transformou nesse animal de costumes; no máximo, poderia ser visto como “domesticado” pela sociedade da época. Alguém como Kaspar Hauser que enxergava, mesmo na escuridão, e que ouvia os “gritos do silêncio” (coisas inconcebíveis para o homem “civilizado”), não poderia ser visto como “normal.” Mesmo tendo aprendido a andar, falar e escrever e apesar de haver internalizado símbolos de comportamentos, Kaspar Hauser nunca seria considerado um “igual” pela comunidade de Nuremberga, pois a sua história de vida estava inevitavelmente marcada pelo estigma da rejeição. Na lápide de Kaspar Hauser, no cemitério de Ansbach, na Alemanha, há uma inscrição que diz: “Hic occultus occultu uccisus est.” Quer dizer: “Aqui jaz um desconhecido assassinado por um desconhecido.” Nada resume melhor o misterioso percurso da vida e morte deste homem.

Segundo comenta o educador brasileiro João Luís de Almeida Machado, em “Nell” o selvagem encontra-se com o civilizado. Expressa o seu medo e a sua angústia de forma nervosa, às vezes, até mesmo violenta. Ninguém sabe ao certo como reagir nesse momento em que se reuniram ao acaso. O homem e a mulher medem-se, palmo a palmo, como a examinar as possibilidades que teriam no caso de um confronto direto, corpo a corpo. O que você faria se estivesse na situação do personagem de Liam Neeson (Dr. Jerome Lovell) ao se encontrar com uma mulher, de aproximadamente 30 anos, que não sabe ao certo como se relacionar com outro ser humano? E como não saber? Simples, basta se isolar no meio de uma floresta com seus filhos, ser a única referência viva próxima deles, não se preocupar em transmitir-lhes conhecimentos estabelecidos entre seres humanos (a não ser calor humano) e morrer sem dar-lhes a mínima noção de que, lá fora, para além das fronteiras que delimitam a mata por eles habitada, há toda uma vasta e complexa fauna de seres humanos… A propósito, depois de algum tempo vivendo em isolamento, os rudimentos de cultura passados de pai (ou mãe) para filho (a), são aos poucos esquecidos ou abandonados por absoluta falta de uso, guardando-se apenas o que é elementar para a sobrevivência. Pronto, está em suas mãos a fórmula para o surgimento de Nell, a tal selvagem mencionada no início. A trama do filme acaba propondo uma reflexão acerca da necessidade do convívio entre seres humanos para a configuração ou caracterização humana das pessoas. Não basta para tal a herança genética acumulada em nossos bancos de dados internalizados, passados dos pais para os filhos (o que, a princípio, não descarta a importância dessa informação transmitida; nos diz apenas que ela não é suficiente para que estejamos preparados para enfrentar o mundo em que viveremos). Abre, também, possibilidade para o questionamento da ética na ciência e para discussões acerca da clonagem e de outros procedimentos técnicos e científicos da área da biotecnologia.

TEMAS PARA REFLETIR E REALIZAR:

Servindo-se da técnica do Cinema-fórum, analisar e debater sobre a forma (linguagem cinematográfica) e o fundo dos filmes anteriormente resenhados.

Organizar nos estabelecimentos de ensino uma amostra monográfica em que, com textos, fotos, desenhos, frases, autocolantes e outros elementos que possamos recolher, se apresentem casos históricos de crianças que na sua infância não tiveram contacto com seres humanos, ou que este fosse mínimo: Vítor de l´Aveyron, Kaspar Hauser, Nell, Rómulo e Remo e outras crianças encontradas em florestas ou selvas, sendo criadas por animais. Com os documentos recolhidos podemos redigir também uma monografia, e policopiar posteriormente. Nesta mesma série de As Aulas no Cinema já apresentei um depoimento que pode ser consultado entrando aqui.

Organizar em todos os estabelecimentos de ensino dos diferentes níveis educativos Escolas de mães e pais, que podem ser coordenadas pelas diferentes Associações de Mães e Pais de Alunos ou Associações de Encarregados da Educação. Com um plano anual de atividades a realizar, que devem ser atrativas e muito motivadoras, para que os progenitores assistam às mesmas. Com a finalidade de que aprendam a educar os seus filhos, a relacionar-se com eles, a ajudá-los sem superprotegê-los, a aprender a coordenar-se adequadamente com os professores e escolas, a refletir sobre a importância da educação, etc. Como estratégias devem utilizar-se variadas técnicas de dinâmica de grupos e, claro está, também o Cinema-fórum e o Livro-fórum.

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