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Esinar a amar a paz, com o filme ‘Rapsódia em Agosto’

Rapsodia em Agosto foto 5Estamos às portas de celebrar um ano mais o Dia mundial da Paz, que desde há tempo se comemora no dia 30 de janeiro, pois foi nesta data quando Gandhi, um dos maiores pacifistas da história, fora vilmente assassinado quando passeava por um jardim de Nova Deli no ano 1948, a mãos de Nathuram Godse, um fanático e fundamentalista hindu. Com verdadeiro acerto, o pedagogo balear Llorenç Vidal, criou no ano de 1964 o chamado “Dia Escolar da Não violência e da Paz (DENIP)”, e desde esse ano todos os 30 de janeiro se veio celebrando, cada vez com mais entusiasmo e com muito sucesso, em todas as nossas escolas. No entanto, não se deve perder de vista que a melhor maneira de fomentar entre os estudantes o apreço pela paz e o espírito pacifista, é promover no dia-a-dia e em cada momento e lugar esse espírito, nas relações humanas quotidianas. Embora, para sensibilizar mais sobre o tema, não esteja por demais, desenvolver com um atrativo programa de atividades, uma jornada sobre a paz, nos estabelecimentos de ensino de todos os níveis e nas suas aulas. Também desde todas as áreas do ensino, tanto de expressão como de experiência, se pode desenvolver com os alunos uma Unidade Didática sobre o tema da Paz. Temos o modelo da que no seu dia, coordenada por mim, publicou a ASPGP. Dedicarei os seguintes dois depoimentos a este tema da Paz e da não-violência, tecendo os meus comentários à volta de dois importantes filmes, muito adequados para tratar a temática pacifista. O primeiro, Rapsódia em agosto, foi filmado em 1991 pelo grande diretor japonês Akira Kurosawa. O segundo, A grande ilusão , é uma obra-mestra do cinema, que foi realizado pelo genial diretor galo Jean Renoir em 1937.

“Rapsódia em Agosto” apresenta uma história simples, contada de forma sensível, intimista e inteligente. A obra, que é o penúltimo filme do diretor Akira Kurosawa, remete ao trauma do ataque nuclear norte-americano à cidade de Nagasaki, em agosto de 1945. Para representar a tristeza e sofrimento causados pela bomba atómica, o filme traz como pano de fundo uma história familiar. Uma sobrevivente de Nagasaki fica em casa com seus quatro netos, enquanto os pais das crianças vão até o Havai, visitar um tio que está no leito de morte. E é neste contexto que toda a narrativa se desenvolve. Abordando temas como perdão e arrependimento, o diretor japonês utiliza recursos metafóricos para produzir sentido, que ao longo do filme é revelado pela própria montagem da obra: uma montagem invisível, que tem a capacidade de inserir o telespetador na história, fazendo com que ele esqueça que se trata de uma obra de ficção. Os longos planos, encadeados com silêncios também duradouros, emocionam o espetador por vários instantes do filme. Produzem os efeitos talvez esperados pelo diretor, quando idealizou a obra: a reflexão sobre a brutalidade da Segunda Guerra Mundial e sobre os valores morais da atualidade. No filme, vemos a sabedoria, mansidão e serenidade dos idosos, no papel da avó Kane. Além disso, percebemos, mesmo que simbolicamente, a ingenuidade e pureza das crianças, representadas pelos netos. Por fim, podemos constatar as atitudes interesseiras e rancorosas dos adultos, representados pelos pais. Os diálogos entre a avó e os netos, reproduzidos durante o filme, trazem, todos eles, algum valor moral a ser discutido, refletido e, quem sabe, colocado em prática. Nestas conversas, temos uma avó idosa e frágil, mas com uma postura de positividade e altruísmo. Por muitas vezes, as filmagens laterais são mescladas à profundidade de campo, dando efeito subjetivo às cenas.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

  • Rapsodia em Agosto Capa DVDTítulo original: Hachigatsu no kyôshikyoku (Rapsódia em Agosto).
  • Diretor: Akira Kurosawa (Japão, 1991, 98 min., a cores).
  • Roteiro: Akira Kurosawa e Kiyoko Murata.
  • Música e Fotografía: Shinichiro Ikebe. Produtora: Kurosawa Production.
  • Atores: Choichiro Kawarazaki (Noboru), Hidekata Yoshioka (Tateo), Hisashi Igawa (Tadao), Mieko Suzuki (Minako), Mitsunori Isaki (Shinjiro), Narumi Kayashima (Machino), Richard Gere (Clark), Sachiko Murase (Kane, a avó), Tomoko Otakara (Tami), Toshie Negishi (filha de Kane), Fumiko Honma e outros.
  • Argumento: A história da fita é um panorama sobre os laços familiares e os traumas da bomba atómica no Japão. Quatro adolescentes vão morar com a avó, Kane, em Nagasaki, enquanto seus pais viajam ao Havai para visitar um parente doente. Os jovens visitam um monumento dedicado à tragédia na cidade e ouvem a versão da avó sobre o ataque, ocorrido em agosto de 1945. Mais tarde, um sobrinho americano de Kane, Clark, chega a Nagasaki para conhecer seus parentes nipónicos e, agora, os jovens têm a oportunidade de conhecer o outro lado da história, também marcada pela dor e pelo arrependimento. O filme amostra como a bomba mudou a vida das pessoas que viviam em Nagasaki, e de como ela se faz ainda presente na vida destas pessoas. É curioso notar como as novas gerações levam a vida tentando esquecer a destruição, enquanto a geração antiga se faz sempre lembrada através dos monumentos e do drama pessoal insistente dos sobreviventes. Profunda reflexão sobre o holocausto nuclear de Nagasaki desde o ponto de vista de uma sobrevivente e seus quatro netos. Entre sorrisos e lágrimas, a avó lembra a história de sua família e da sociedade japonesa de seu tempo, tratando de chegar a compreender melhor o passado e o presente.
  • Nota 1: Para olhar 5 minutos da cena final do filme entrar no Youtube.
  • Nota 2: Resulta muito interessante ler o amplo comentário sobre o filme escrito por Nilson Nobuaki Yamauti, sob o título de “Rapsódia em Agosto, uma canção pela paz entre os povos”, entrando aqui.

KUROSAWA SEMPRE A FAVOR DA PAZ NA SUA ARTE CINEMATOGRÁFICA:

Rapsodia em Agosto foto 20Pelas lentes de Kurosawa, as sequelas deixadas pela guerra no sentimento das diferentes gerações ocupam o centro do filme, mostrando diferenciadamente como a guerra e a posterior ocidentalização moldaram o comportamento e o caráter das gerações. A avó protagonista expressa grande alegria por estar junto com os netos naquele verão. Embora não apreciem sua comida, Kane não se opõe em entregar a cozinha à sua neta. A refeição é-lhe sempre motivo de profunda gratidão, e a reverencia antes de se servir, mesmo a preparada ao paladar dos netos. Estes são a geração pós-ocidentalização, a geração que exibe roupas com motivos norte-americanos, crianças que nasceram durante o Japão em franca recuperação económica quando os laços com o ocidente, EUA principalmente, já estavam bastante estreitos. Seus pais são a geração do pós-guerra, a geração produtora que cresceu durante a frenética recuperação do país e construiu seu quotidiano em volta do trabalho. Mergulhados neste mercado, não têm tempo para olhar para o Japão cultural, das tradições, da poesia, do romantismo, da primazia dos sentimentos. Estão fortemente condicionados pelas circunstâncias: temem constranger ao expor ao primo norte-americano Clark, rico plantador de abacaxi no Havai, a morte do pai causado pela bomba atómica jogada pelo seu país, e com isso, perder eventual emprego. A riqueza dos parentes havaianos é objeto de admiração: a casa majestosa, a piscina, o luxuoso automóvel e a enorme fazenda de abacaxi. Kane, a velha senhora que vivenciou a bomba atómica de Nagasaki em 9 de agosto de 1945, carrega ressentimentos sobre os que atiraram a bomba. Enviuvou naquele dia quando seu marido morreu enquanto lecionava numa escola. Sua mágoa não se prende à guerra em si, mas à nação que jogou a bomba e fingia ignorar o fato. Traz no corpo a cicatriz da radiação, marca indelével a lhe expor o crânio parcialmente desnudo, memória inapagável de uma guerra que ainda não se findou, cujas vítimas vivem ainda com sequelas provocadas pela radiação. Personifica o Japão tradicional, antigo, que viveu a guerra, ressentida com a estupidez dos humanos que lhe tirou o marido, a cidade e a comunidade em que vivia, mas ainda o Japão dos sentimentos puros em que a convivência harmónica assume seu mais alto valor. Serena e às vezes silenciosa convivência, onde palavras são desnecessárias para se contemplar o luar com os netos ou para comunicar-se quando recebe visita de uma amiga, também enviuvada pela bomba. “Pessoas conversam sem palavras”, explica a avó. Kane perdeu um irmão, Suzukichi, que definhou aos poucos; perdeu todos os cabelos e vivia recluso desenhando apenas olhos, o que mais temia, o que observava sua deficiência física. A avó diz que o neto mais novo é muito parecido com o irmão falecido, o que foi motivo de zombaria por parte das demais crianças. Relata o salvamento do irmão pelo monstrinho Kappa, que o retirou das águas onde estava afogando-se. A razão manifesta-se nos dizeres do neto mais velho ao duvidar do salvamento de uma criança por um monstrinho tão pequeno e de pernas e braços finos. Mas logo todos correm assustados e aterrorizados pelo monstrinho verde, peraltice do menino mais novo, o que era zombado por se parecer com Suzukichi. A jovem geração, a da razão, em conflito com a antiga, a mística, das fantasias e lendas. Com a visita do sobrinho Clark, Kane e Clark se reconciliam, debitando à guerra os tristes acontecimentos. Criticado pela sua visão ingénua da guerra, Kurosawa respondia que as pessoas não querem a guerra; quem a deseja e faz são os governos. Seus filmes não são partidistas, distantes dos interesses e das querelas entre nações. Falam do homem: sua vida, seus dramas, suas alegrias e tristezas. Trazem sempre a mensagem da boa convivência humana. Analogamente, como Voltaire declarou, possivelmente se sentia homem antes de se sentir japonês. Ao longo da narrativa os netos descobrem na avó o Japão tradicional, do cultivo de afetos, de sentimentos puros intocados pelas circunstâncias da vida. O Japão do silêncio que conversava, que via poesia na lua cheia ou na flor solitária à beira do caminho.

Rapsodia em Agosto foto 4O filme parece entrar num estado catártico a partir da reconciliação: o órgão que inicia o filme desafinado, agora afinada e harmoniosamente as notas musicais acompanham o canto entusiasmado dos netos: “o rapaz viu a rosa no meio do gramado, brotando em toda sua inocência. Tudo lhe foi revelado; uma incessante fascinação”. Após a morte do irmão, pai de Clark, a avó perde o senso do real e enxerga o irmão morto a visitá-la; o clarão de relâmpagos a faz proteger os netos da radiação da bomba atómica. O filme termina em meio a terrível tempestade, cujas nuvens pesadas e escuras conduzem Kane à Nagasaki da bomba. E para lá caminha a franzina sobrevivente para salvar sua família, tentando proteger-se com um pequeno guarda-chuva. A cena traz a densidade imagética declamada por um menestrel das telas: o Japão antigo corre para não ser destruído, para preservar seus valores culturais, seguido pela geração que foi moldada pela ocidentalização mas que não quer perder o Japão antigo. A geração ocupada com o trabalho, sem tempo, agora abandona tudo para correr atrás do que nunca tivera tempo para cultivar. O Japão antigo avança fragilizado, com dificuldade, porém vivo e resoluto com força para fazer seguidores. Permeando o Japão do passado, do presente e do futuro, como a uni-los sob uma única onda que lhes dá significado, a chuva torrencial a lavar ressentimentos, a aguar uma nova realidade na expectativa do nascimento de um novo amanhã. Com o esgarçar da proteção, agora o Japão se entrega plenamente à força da onda renovadora. A inocência foi descoberta; e o filme é uma incessante fascinação.

TEMAS PARA REFLETIR E REALIZAR:

Utilizando a técnica do Cinemaforum, podemos analisar o filme de Kurosawa, desde o ponto de vista formal (linguagem fílmica, planos, planos contra-plano, movimentos de câmara, jogo com o tempo e o espaço, etc.) e de fundo (mensagem que intenta transmitir e atitudes que manifestam as diferentes personagens do mesmo). Também a maneira de como no Japão pessoas de três gerações, protagonistas do filme, reagem e respondem um contexto tão peculiar, e seu relacionamento entre a avó, seus filhos e seus netos.

Organizar nos estabelecimentos de ensino um Certame Poético sobre a guerra e a paz, no que participem os estudantes dos diferentes níveis educativos. Posteriormente, os poemas apresentados podem ser publicados e/ou policopiados dentro de um caderno monográfico que podia intitular-se A Criança e a Paz. O formoso livro coordenado por M.ª Rosa Colaço, editado em Lisboa em 1988, sob o título de A Criança e a Vida, podia servir perfeitamente como modelo.

Tomando como base a leitura do famoso poema de Celso Emílio Ferreiro “Digo Vietnam e basta”, que se reproduz ao final num Anexo, podemos organizar nas aulas um debate-papo sobre o conteúdo do mesmo, e sobre como quase sempre (e por qué) detrás das guerras e conflitos bélicos no planeta estão os EUA. Os alunos podem elaborar uma listagem de países que desde o século XIX sofreram a intervenção do país americano até mesmo o dia de hoje. Para isto podem consultar os muitos documentos que existem na internet.

ANEXO: “Diego Vietnam e basta”

(poema de C. E. Ferreiro)

Digo Vietnam e basta
Digo bomba de fósforo.
Apenas digo nada.
Digo lombriga e larva
de carne apodrecida.
Digo nenos de napalm,
terror de noite e selva,
fedor de cidade e cloaca.
Fame, suor, aldrage,
pugas de aceiro, antropofagia.
Digo guerra bestial,
tremor de terra, crime, lume, lava,
estourido, verdugo
e mortandade em massa.
Digo gáas abafante
Apenas digo nada.
Digo ianque invasor,
depredador de pátrias.
Digo plutónio, pentágono,
esterco bursátil, palanca.
Presidente, gadoupa,
chuva, amarga, baba.
Digo petróleo, ferro,
mineral, trampa,
lobo, caimão, diplomacia.
Digo devastação que USA, usa.
Apenas digo nada.
Digo Vietnam e está já dito tudo
com uma só palavra.
Para abranger a vergonha do mundo,
digo Vietnam e basta.

 

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