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Em Lisboa sobre lo mar

Há na cidade e na alma de cada indivíduo
as mesmas partes, e em número igual
Platão, A república

“Existem cousas tristes em Lisboa”, cantava Uxia pelos 80. Por aqueles anos percorríamos país durante os fins de semana num Seat Panda com um autocolante que exibia um grande G e ao que a minha mãe lhe acrescentou uns exclusivos estofos de veludo azul cosidos pelas suas mãos. Enquanto rodávamos por uma Galiza de infinitas memórias até então quase desconhecida para mim, ouvíamos um limitado repertório de cassetes com música de gente do país. Habituada a ouvir aquele ditado de que “quem não foi a Lisboa não viu cousa boa”, as imagens da canção, o “lento diapasão”, a reverberante “medalha do Rossio” e o “convexo labirinto”, rodam desde há anos na minha cabeça com o efeito do estranho manuscrito encontrado. Quis a fortuna que, após dez anos de voltas pelo Algarve, viesse viver a Lisboa. Trazia na altura no meu cartafol imaginário da cidade, para além das imagens da canção, uma lembrança da minha primeira viagem a Lisboa, lá pelos meus vinte e dous anos: o escudo da cidade, dous corvos sobre uma nau, representações duma gramática simbólica que logo senti como própria. Do meu primeiro fim de semana em Lisboa lembro ter passado uma manhã inteira viajando no metro, ouvindo línguas e olhando rostos. Tão diversa humanidade aos olhos da minha alma e a pergunta… Que faz aqui esta gente? Que faço eu?

Fazer pode-se fazer muita cousa. Eu vim trabalhar. Sou professora de espanhol/língua estrangeira numa escola pública. Este ano dou aulas numa escola que está na colina mais alta de Lisboa, a Penha de França. Todos os dias subo a íngreme rua de Angola imaginando-me Petrarca a subir o monte Ventoux. Cada um tem os seus remédios para a monotonia do trabalho quotidiano. Ensino espanhol com a esperança de encontrar a estratégia para que a máquina da deformação, ou esperpento como dizia Valle-Inclán, que é o estado espanhol se arrependa algum dia da eficácia do sistema de ensino que me garantiu tão apurado domínio da língua castelhana. Cheguei a esta ideia depois de ver um documentário sobre feministas negras do Brasil, que manifestavam a sua frustração pelas dificuldades em articular ação com as suas congéneres da área hispano-falante. Para começar, ensino aos meus alunos que o espanhol é uma língua americana. A frase não é minha, é dum professor da Opus Dei que tive na universidade. Tenho o pequeno orgulho de que alunos meus soubessem por mim quem foi Simón Bolívar e Tupac Amaru, como se chama o povo que construiu o Machu Picchu, quem é o deus Tlaloc, porque na Europa comemos batatas, que em português pronunciamos palavras nauatl como chocolate ou que dedicassem aos seus namorados aquele verso de Neruda “quiero hacer contigo lo que la primavera hace con los cerezos”. Na Galiza nunca teria imaginado que ensinar espanhol pudesse ter estes usos.

Mas não só de profissão se fazem os meus trabalhos na cidade de Lisboa. Como gosto de ir deixando registo dos meus dias, vou anotando os rastos de galegos que encontro, e não há poucos para além dos muitos da memória genética da população desta cidade, que não sei o que significa nem que sentido tem, mas é um dado. Encontro registos, claro, desde a conquista de Lisboa. Entre histórias bélicas e panegíricos de pais da pátria, encontro estudos sobre a proliferação de topónimos relacionados com galegos na Estremadura portuguesa, linha de extremas da conquista cristã que abrangia os territórios dos atuais Leiria, Lisboa e Setúbal. De todos os dados, fico com a abrangência do termo galego para galegos e minhotos (ainda na perceção dos velhos do Algarve, que a todos chamam “galegues”), ou, curioso ou não tanto, a confusão que alguns fizeram entre “galicii” e “gauleses” (o próprio Alexandre Herculano). Mas também com o facto de estes colonos serem, em grande medida, homens e mulheres do mar. Nas conversas com os lisboetas de mais idade aparecem as imagens dos restaurantes de galegos, dos aguadores ou dos amoladores. Poderia estar o inventor da ginjinha, um tal Espinheira, a romaria do Santo Amaro ou alguns personagens que mereceriam fazer parte do discurso coletivo galego como o poeta de Orpheu de ascendência galega Alfredo Guisado. Mas a emigração galega é “difusa”, como é definida num documentário que sobre esta comunidade se fez há mais duma década. Tenho para mim que essa “difusão” tem a ver em parte com o facto de que de a continuidade cultural entre galegos e portugueses do norte, filhos duma comum matriz galaica, persiste e resiste, afortunadamente, o qual dá alguma esperança sobre os limites da omnipotência dos projetos políticos. No centro galego, à volta da música tradicional, é evidente como a comunidade está viva. Não sei se há mais forte fio da trama histórica galega que a vocação musical. Mas há outra leitura menos positiva, a da necessidade de coutar a ação cívica vinda da comunidade galega no perigoso território peninsular do século XX.

Por falar em viagens peninsulares, há dias dei com um artigo que Vicente Risco publicou em Céltiga dando notícia duma viagem a Portugal feita no outono de 1928. Risco deixa mais um testemunho da visão de Portugal como Galiza livre e da continuidade “de almas”. Ficou-me na memória uma expressão deste artigo: as “desgraças” de Portugal trazidas “não há dúvida (diz Risco) pelo karma das descobertas”. Gostava de lhe perguntar ao Risco em quais desgraças, concretamente, estava pensando. Conhecendo a visão decadentista da História que tinha Risco e essa forte dualidade no seu pensamento entre o elemento ário-espiritual nortenho da Península e o semítico-sensual meridional, prefiro nem acabar de imaginar que lhe andaria na alma. Eu, que fui durante anos enamorada mulher dum algarvio dos dous Algarves, não me sinto limitada por essa fronteira de pensamento. Mas não deixo de pensar no acerto da expressão de Risco quando contemplo o Padrão dos Descobrimentos. Ver a língua do clã, a imaculada língua da terra, irmã das ondas e dos pinheiros, a língua dos antepassados de infinita bondade redentora em que não se escreviam os recibos da contribuição, convertida em língua de império, é um salto impossível na narrativa do povo galego da maneira em que a mim me foi transmitida. Afinal no meu pensamento de filha do mar sempre há uma fronteira. Os muros são precisos para proteger aquilo que amamos. E eu amo a tradição libertária galega, a sua vocação de homens livres para livres terras. Na imagem da nau que leva às enormes figuras do Padrão não consigo ver a continuidade com as sociedades marinheiras que conheci um pouco por todo o litoral galego. Nem no litoral do Barlavento algarvio onde morei durante tantos anos. Como se pode pensar o mar sem os homens e as mulheres do mar? Aquela nau conta outra história, e não é a minha. Para contar a minha história, a pessoal e a do povo que me dá a matriz, gosto de me embarcar no cantar de Manuel António, a essa viagem de despojamento e solidão absoluta no mar maior do poema “Sós”. Bem longe das narrativas da conquista do espaço exterior, o valor da ilha interior, do silêncio e da morte. Porque assim é a ordem da vida. Até os deuses sabem morrer, como as estrelas. Só alguns homens querem ser imortais.

A voz de uma moça tira-me dos meus pensamentos. Da sua conversa ao telefone, entre muitas “cenas”, “tipo” e “ya”, consigo perceber que, com bastante aflição, procura a ajuda da colega para compreender a matéria do seu próximo teste de História. A moça não para de passar páginas do seu manual do 11º ano. Parece que o teste tem a ver com Napoleão. Ao seu lado um senhor de alguma idade vai passando contas de um colar dourado semelhante a um rosário. Ao meu lado uma rapariga que sorri olhando para a escuridão do túnel do metro leva um antúrio verde nas mãos. Hoje é 14 de fevereiro. Tantas histórias à minha volta que nem começam nem acabam nos indivíduos que as vivem…

Vem à minha memória um sonho que tive há tempos. Um homem forte caminhava quase caindo, como abatido por uma arma, numa rua noturna. Vestia roupa marinheira. Num segundo momento o sonho mostrou-me um mapa antigo. Vi um Atlântico norte cheio de ilhas, um grande arquipélago no alto da dorsal atlântica, com todas as ilhas próximas as umas das outras, como uma constelação. As ilhas estavam identificadas por monumentos notáveis. E lá vim, sim, a minha ilha do farol, a minha ilha sonhada da soberania absoluta do mar que ilumina por clarões o meu entendimento. Não quero História que não sonhe ilhas do paraíso ou o retorno da perdida Perséfone à casa da mãe Deméter. A nossa natureza, a dos filhos da terra, conta outra história, também para os nascidos neste “jardim” à beira do Atlântico. A nossa história, a minha, a dos homens e mulheres que tenho à volta, não se mede na escala dos heróis da propaganda dos regimes fascistas do século XX. É mais semelhante à do forte lobo de mar abatido do meu sonho, que com esforço tenta levantar a sua inteira e nobre natureza. De todas as visões possíveis de Lisboa, fico com a mais subjetiva impressão anímica: Lisboa como grande cais atlântico, como mais um cabo do mundo na extensa linha de luzes da margem atlântica deste continente que habitamos e que vejo como um reflexo esperançado nas águas do meu coração. Cais que é via para o trânsito de almas e de ânimas entre o aquém e o além do físico e dos fios míticos que tecem a nossa história individual como forte trama que nos guia no labirinto escuro desta história dos impérios.

O conto de Kafka “O escudo da cidade”, narra uma parte não contada na Bíblia sobre a construção da torre de Babel. Sem qualquer interpretação moral do mito por parte do autor, no conto a construção da torre é a construção do conhecimento, que a linha do progresso vai deixando obsoleto geração após geração. Contínua é a cidade dos construtores e esse, a continuidade da cidade, da vida em comum, é o verdadeiro sentido da construção da torre no conto de Kafka. A sempre inacabada epopeia humana, qualquer cousa entre a defesa duma cidade e uma viagem de volta, é um constante apelo à aventura. Apesar dessa promessa de destruição total que paira sobre a cidade do conto. Ou sobre qualquer cidade, Ys, Valverde, Luzerna, Paris. Ou Lisboa. Assim, estas crónicas que hoje inicio, neste fevereiro em que tão intensamente zoa o vento, querem ser a imagem desta instável humanidade em trânsito da que me sinto parte ativa nesta cidade de Lisboa, com os sonhos, desejos, frustrações e esperanças da mulher galega que sou, por nascimento e por vocação. Não sei que arquitetura ou narrativa sustenta a esta humanidade de tantas origens e línguas. Imagino que a nau continua a ser a melhor representação da coletividade que somos, da procura de sentidos nesse espaço oceânico ao que todos pertencemos sem nunca o compreendemos completamente. Hoje, em Lisboa, para este século XXI ao que nunca mais chegamos, tanto é o peso do passado, barcas novas mandei lavrar.

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