De confluências dissidentes

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Foi em 86 que eu cheguei ao reintegracionismo (ortográfico) de maos dadas com outros dous amigos, também estudantes em Compostela, o Gonçalo Grandal e o Joám Paz. Lembro o choque que me produziram os “nh”, “lh”, “ç” e “ss” daquele Prontuário comprado em Couceiro. Foram meses a remoer e digerir aquelas grafias. Um processo em que muito ajudara a leitura do Estudo Crítico, um livrinho que ainda guardo como um tesouro e que seria a minha ponte para o português. Estava escrito, como estava escrito, numa norma de AGAL com “coa”, cando”, “hai”, “assi”, “tamém”, “-ea/-eo/eam” e outros formas hoje impensáveis em qualquer lusista… Ai quanto evoluímos no movimento! Quanto desconhecíamos as próprias falas galegas e a história da língua!

Em 86 também desaparecia, de facto, a fronteira entre a Galiza e Portugal como consequência da entrada dos dous estados ibéricos na Comunidade Económica Europeia. A seguir viria o incremento dos intercâmbios comerciais e humanos entre as duas beiras do Minho, a oficialidade do nosso idioma no Parlamento Europeu, a Eurorregiom (tam pouco aproveitada), os Erasmus… Portugal progressivamente deixava de ser o país exótico e atrasado das nossas primeiras viagens. E os “irmaos de além-Minho” da velha retórica galeguista convertiam-se em amigas e amigos reais, com nomes e apelidos.

Na década de noventa comecei a escrever em “padrão” (ortográfico). Foi uma mudança gradativa e dependente do âmbito. Mantivem durante décadas essa duplicidade normativa e ainda equilíbrios ortográficos quase impossíveis (converti-me num especialista em escrever documentos em que nom aparecesse umha/uma ou -çom/-ção) e tudo para nom ferir sensibilidades ou criar problemas nos grupos ou coletivos reintegracionistas de que formei parte, de que fum sócio. E digo sócio e nom militante, porque militante tem conotaçons com a obediência devida dos soldados nos exércitos e essa está demais na cultura, sempre, por definiçom, amiga do livre-pensamento.

Foi essa mesma a década em que a Internet, e com ela a informaçom globalizada, começou a chegar às nossas vidas e assim progressivamente começamos a viver numa Galeguia virtual, onde até o remoto Timor Lorosae, recuperada em 2002 a soberania e a herança cultural lusa, ficava perto. Foi aí também que chegou o “tropicalismo” ao nosso movimento e o Brasil, na sua imensidade, cobria as lacunas que neste universo cultural da Rede deixavam Portugal e a Lusáfrica.

E passaram os anos, mudou o século e fomos ficando sós. Aqueles que se diziam de “mínimos reintegracionistas” chegaram em 2003 a uma confluência normativa com os “oficialistas”, por aquelas cousas que tem a “realpolitik” e as obediências partidárias que estavam por trás. E a normativa ILG-RAG passou a aceitar duplicidades como “-aria/-eria”, “-bel/-ble” ou “comer o caldo/come-lo caldo” e a ser assumida polo nacionalismo galego maioritário. Alguns pensaram que isto era o final da dissidência linguística na “Galicia/Galiza”, mas nom, no reintegracionismo continuávamos a trabalhar e a procurar novos jeitos de agir numa sociedade galega cada vez mais complexa, urbana e castelhanizada. A tolerância mútua permitia desenvolver projetos como o Portal Galego da Língua, a Gentalha do Pichel, a Semente ou o Novas da Galiza… e outros muitos, nem sempre bem sucedidos. Continuávamos aí e o nosso paradigma para a língua ganhava adeptos, até no “oficialismo”, após anos de fracasso normalizador guiado apenas polas palavras de ordem do “falemos galego, porque é noso”.

Em 2014 a Iniciativa Legislativa Popular Valentim Paz-Andrade, promovida polo lusismo, era aprovada por unanimidade no Parlamento Galego. Era um milagre? Nom, era o resultado duma inteligente táctica reintegracionista e do facto de o português já nom ser percebido socialmente como uma ameaça por parte de muitos, mas como uma oportunidade.

Chega agora a proposta duma confluência normativa na AGAL, uma proposta aberta que admite duplicidades e transiçons entre as duas tradiçons ortográficas reintegracionistas, umha proposta, em definitivo, que admite a realidade que se dá na escrita dentro do nosso movimento, quer dizer, que fai “legal” o que já é real. Uma confluência que deixa a porta aberta para que sejam os utentes da língua os que escolham em cada caso, como de facto levamos anos a fazer. Umha porta aberta para aproveitar institucionalmente as oportunidades que abriu a Paz-Andrade. Uma porta aberta para que ninguém fique fora. Deixemos medos, receios e leirinhas, haja democracia interna e lembremos que todas e todos estamos no mesmo barco. Haverá os que preferirám ver os matizes que nos diferenciam, alguns gostarám de reivindicar purezas academicistas ultrapassadas, partindo de posições nem sempre coerentes, como defender uma normativa “nacional”, mas publicar na “internacional” (…e de incoerências, em matéria lingüística, quem nom pecou que atire a primeira pedra!). No entanto, outros, acho que muitos, acho que a maioria, preferiremos ver aquilo que nos une, para continuarmos a avançar no caminho da reintegraçom.

Avante a confluência normativa!

P. S.: Este texto está escrito na “nova” confluência normativa que espero abranja toda a malta e deixe atrás fetichismos e dogmas ortográficos.