De arcaísmos e modernices

Partilhar

O falante de espanhol experimenta a agradável sensaçom do já visto quando escuita falar ladino sefardi. Guardo na memória a imagem daquele senhor de falar polido que se nos acercou em Istambul para oferecer-se amavelmente a orientar-nos diante dum mapa da cidade. Era Cervantes guiando um transeunte.

A sensaçom assemelha-se à que sentimos ao escuitar qualquer camponês anónimo de um remoto lugar de América do Sul, ou a um jornalista desse continente. Estoutro dia, por exemplo, ouvíamos que a cidadania de Iguala estava muito “enojada” pola passividade do governo. Cá na Espanha já ninguém se enoja nem desaprova nem repudia nem anda irritada, aqui a gente anda inevitavelmente, cabreada, e mais nada. A qualidade da comunicaçom vai-se adaptando sem remédio aos esquálidos requerimentos do poema rap e o recado por whatsapp.

Tenho observado a mesma atitude de cordial reconhecimento perante o arcaísmo natural do galego em portugueses letrados de qualquer latitude, em especial do Brasil.

Convalidar e proteger a natural expressividade do galego oral e o seu acervo lexical e fraseológico em nada contradiz a necessária estratégia da sua reabilitaçom no espelho do idioma português contemporáneo. A disjuntiva quê conservar, quê incorporar, constitui o par dialéctico onde se há de medir tanto a razom de ser como o futuro do movimento reintegracionista. Conservar restaurando é o caminho.

A hipótese do galego língua singular alheia ao português e subjugada ao castelhano imperante no país há-de ser subvertida pola do galego enxertado no português contemporáneo. Enxertar o galego no português é o labor que nos convoca, tam incompatível com a suicida inoperância da hipótese espanholista como da evasom individualista ao prazenteiro paraíso do “português da Galiza” que a ninguém incomoda.

Precisamos para isso de umha geraçom fundacional de escritores comprometidos com a tarefa de navegar pola língua possuída em baixel português. Um exigente desafio. O cultivo de um padrom galego transparente para o português letrado é um objectivo mais realista, embora talvez mais árduo, do que o empenho em criar literatura portuguesa na Galiza. O Pessoa dos poemas ingleses e o Tabucchi do Requiem – posteriormente traduzido para o italiano – estám chamados a ser casos singulares. A gente reconhece-se no próprio e oferece resistência ao alheio e esquisito por efeito talvez desse sistema imunitário que protege do corpo estranho todo organismo vivo. A consciência linguística colectiva – o equivalente ao voto em política – nom transige facilmente com empréstimos forâneos de segundo grau – penso nos ateliê, design, nuance, creche– e, já postos, tampouco se sente cómodo com a inundaçom de ditongos ão que adorna a prosa reintegrada e desconcerta seguramente mais do que atrai, como marca certa de estrangeirice.

Os anglo-saxons adoram a sua bíblia (King James Bible, 1611) como os germanos a sua (Bíblia de Lutero, 1522-1654). Nos países católicos, o Livro foi substituído com sucesso polo Missal Romano, muito mais ortodoxo e edificante. Contodo, a Espanha conta com o seu Reyna Valera (1569) e Portugal com o Ferreira de Almeida.

O Novo Testamento João Ferreira de Almeida via a luz na Holanda em 1681 e era completado com o resto do cánone bíblico em 1694, três anos depois da morte de Ferreira. A bíblia Almeida experimentou inúmeras adaptaçons a impulso das demandas pastorais: Almeida revista e corrigida (ARC), Almeida corrigida fiel (ACF), nova traduçom à linguagem de hoje (NTLH) dirigida ao público brasileiro menos letrado e outras talvez. Cada versom piora inevitavelmente o original. Foi por isso que andei um tempo à procura da versom ARC até dar com ela, como era de prever, no alfarrabista Chaminé da Mota da Rua das Flores do Porto. A comparaçom entre as variantes da Almeida, depara honesto divertimento a qualquer leitor. Observem por exemplo

(A) -“E Pilatos lhe perguntou: Tu és o Rei dos Judeus? E ele respondendo disse-lhe: Tu o dizes” (ARC)

(B) -“Pilatos perguntou: Você é o Rei dos Judeus? Quem está dizendo isso é o senhor, respondeu Jesus” (NTLH).

A segunda versom é um exemplo insuperável de modernice indirecta e respeitosa para qualquer leitor galego. O Jesus da NTLH mais parece um digno empregado de mesa interpelado por um cliente que o fascinante personagem que segue interpelando a humanidade desde há mais de 2000 anos. O sóbrio arcaísmo de “Tu o dizes” frente à extravagante modernice que pretende melhorá-lo é para mim antológico.

O persistente arcaísmo do galego tem um valor inapreciável na complexa constelaçom da galusofonia [1]. Um recente artigo de X. M. Morell em Praça Pública[2] suscitou um comentário de procedência transfronteiriça que considero sintomático da difusa simpatia do leitor português polo arcaísmo galego. O ocasional comentarista manifestava o seu decidido apreço polos “tu” e “vos” galegos “frente aos monótonos e ambíguos você e vocês” do português e polo uso habitual do pretérito-mais-que perfeito em galego, e mesmo polo pagarei-lhes frente ao pagar-lhes-ei usual no português. Mais surpreendente ainda era o apreço manifestado polo nosso advérbio “nom”, o qual devo aprovar sem reservas ainda que por mais nom seja que pola sua virtude protectora das nossas ameaçadas nasais velares frente à virulenta proliferaçom das alveolares castelhanas. E já postos, acrescentaria a sonora claridade de “umha”, ŭa, galega frente à minguada transcriçom “uma”, tam próxima da “una” espanhola que nos inunda cada dia. Naturalmente escuso argumentar a favor da incomparável precisom gramatical do nosso par pronominal “che/te” como marcador de umha diferença perdida em português e desactualizada no torpe leísmo castelhano. Dá vontade de arremedar Bergamín proclamando: com o português até a morte mas nem um passo mais! O legado lingüístico do galego nom é menos valioso na galáxia lusófona do que o léxico africano e brasileiro que colora as prosas transatlánticas.

Gosto de navegar polas rotas etimológicas do dicionário Houaiss. Aí podo encontrar os “si/assi” de onde procedem os “sim/assim” e as “persoas” que nom chegárom a “pessoas”. Foi lá polos séculos XII e XIII quando a Galiza nom fora amputada ainda pola fatídica fronteira sul. Só podemos sorrir quando topámos com os nossos “cregos” mascarados como arcaísmo de “clérigos” no português de 1266. Que seria de nós, galegos, e do nosso viril vate cívico Curros sem os cregos que há tanto abandonárom Portugal!

Volvendo aos arcaísmos, admiramos a fidelidade dos baianos ao arcaico “h” de São Salvador da Bahia. Um “h” oficialmente legitimado pola Academia Brasileira de Letras em 1943, em razom do seu carácter de “topônimo de tradição histórica secular”. O português europeu e o AO90 desaprovam o tal “h” identitário mas os baianos nom se importam, afinal, pensarám, também os mexicanos adoram o seu “x”.

Galiza tem pendente o debate em pleno de um amplo acordo ortográfico, impedido até o momento polo sinédrio que exibe com orgulho o escapulário do “ñ” que o preserva das armadilhas do maligno lisboeta. Mas, o Acordo Ortográfico que o país precisa continua sendo infelizmente de índole ad intra. O acordo ad extra nom deixa de ser, no entanto, um aguerrido acampamento na fronteira.

Notas a rodapé: