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Daniel Amarelo : “As novas gerações fugimos um bocado da hiperfilologização do reintegracionismo”

daniel_amarelo-03Daniel Amarelo é um neo-falante do norte, que defende atitudes analíticas para assombrar o essencialismo.

Acha que a Filologia como tal está com os pés na cova. Julga que o reintegracionismo tira a ferrugem.

Integrante da equipa da Através augura que e em tempos bastante futuros, as pessoas continuarão a ler livros impressos e até a colecioná-los.

Agalizou-se pola proximidade, humildade e dedicação honesta das pessoas que fazem parte dela.

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Daniel Amarelo é de Ferrol e neo-falante. Como e quando surge a vontade de nadares na língua galega? Em que medida os neofalantes são importantes na vitalidade social da língua galega?

Suponho que como acontece com todas as pessoas neo-falantes, as leituras que vão surgindo, as figuras de certas professoras bastante marcantes, as conversas com outrem e a aquisição de uma certa consciência metalinguística num contexto pintado polo auto-ódio (seja Ferrol, Vigo ou qualquer outra cidade num alto grau de desgaleguização) criam um bom caldo de cultivo para experiências micropolíticas emancipatórias como a minha. Sou só mais uma dessas muitas, muitíssimas pessoas que decidem um dia não continuar a contribuir para fazer este mundo mais pobre. Desde os comentários que os meus bisavós faziam sobre o seu percurso vital, como chicotes atirados contra as costas, até aos discursos mais engajados de intelectuais, tudo acabou por somar para que desde os dezasseis anos abandonasse o espanhol, conservando-o só como ferramenta pontual e interessante, para, radicalmente, instalar-me no galego.

Não foi fácil em determinadas alturas ser coerente com essa decisão. A violência simbólica – e não só – é maior do que parece e os dispositivos e barreiras estatais criam barreiras cognitivas e emocionais enormes. Lembro ser expulso várias vezes da aula de inglês, lecionada em espanhol por uma professora não muito proficiente na sua área, polo mero facto de falar em galego, uma vez que considerava que estava a tentar politizar as suas aulas com essa mudança de código. O que na altura me despertou uma ira gigantesca hoje entendo-o perfeitamente. É um labor e um inevitável fado para @s neo-falantes aprender a ser analític@s, porque de nós depende que o galego não caia no essencialismo.

Neste sentido é que dimensiono o importante papel d@s nov@s falantes: tememos menos o erro, a nossa construção discursiva é mais descomplexada e abrimos mais o leque de possibilidades da língua, porque realmente o necessitamos. Nessa junção entre a diferenciação com o espanhol e o modelo linguístico que queremos atingir para uma língua que emocionalmente não nos fagocita, é provável que a mais de um/a se lhe escape um olho além do Minho, ou uma perna ou outras partes do corpo menos decorosas. Até há quem deixe partículas além do Atlântico. Nesses lugares descobrem-se pedras preciosas que no nosso cantinho nortenho e europeu já não voltam mais.

Estudaste Filologia Portuguesa e Galega. Qual foi antes de qual e quais as motivações para abordares ambas?

Na verdade, só estudei por completo Filologia Galega, hoje chamada oficialmente de Grau em Língua e Literatura Galegas. Como a estrutura dos graus em Filologia na USC é bastante flexível, fazendo mais um ano e meio podes conseguir outra Filologia complementar, como é a Portuguesa no meu caso. Nisso é que estou na atualidade, a acabar algumas disciplinas de Estudos Lusófonos, para além doutros projetos laborais e pessoais.

Decidi continuar os meus estudos e não ficar só com Galego porque me pareceria irresponsável não fazê-lo, existindo essa facilidade. Uma grande parte do alunado que será no futuro professorado de galego sai da carreira sem saber português. Eu não queria apartar a olhada doutras práticas artísticas e comunicativas que se produzem na minha língua noutras latitudes do globo. Revela-se-me indissociável a Filologia Galega da Portuguesa, embora as figuras académicas mais salientáveis de ambas não fagam muito trabalho neste sentido conjunto… De qualquer maneira, a Filologia como tal está morta e, hoje, os Estudos Culturais e os Estudos Linguísticos e do Discurso permitem uma maior flexibilidade para nos ressituarmos, sempre com o galego (digamos, internacional) como pano de fundo.

Em que forma a vivência do galego como uma língua internacional e o movimento social que alimenta pode alterar o statu quo atual?

É uma pergunta que eu também me fago cada dia. E que me fazem com frequência. Provavelmente uma das mais difíceis… Digamos que, do lado de dentro, tira a ferrugem; do lado de fora, descoloniza a Lusofonia.

A visão do galego como uma língua internacional e a vivência real e diária que se une a esta filosofia auxilia para criar novos discursos sobre a língua e sobre o que afinal é o galego – o que per se está ótimo – ao tempo que aposta pola prática de novas estratégias de revitalização linguística. Se todas as pessoas tivessem de forma acessível e não “encabronada” esta cosmovisão poderiam beneficiar-se do que eu já me beneficiei: escrevi e fui publicado no meu galego internacional, trabalhei, conversei com pessoas incríveis e assisti eventos em galego fora da Galiza (em Copenhaga, em Lisboa, em Berlim), até namorei com pessoas não galegas em galego!

Não se trata só de prestígio (imagem, representação, poder simbólico), mas de recursos. Hoje, estão a negar-nos o progresso e o bem-estar ao conjunto da sociedade galega decidindo e impondo que o galego é só uma língua autonómica. E cada vez que falo com pessoas galegas emigradas a Portugal ou ao Brasil, muitas delas jovens, mais claro fica o roubo de oportunidades de vida e de riqueza e diversidade a que somos submetidos com este modelo. Trata-se de uma questão que também é material.

Afortunadamente, as pessoas que pulamos por uma visão alternativa conversamos muito sobre isto e, em ocasiões, discutimos fervorosamente. Nessa dinâmica de diálogo e convívio foi-se criando um movimento social que cada vez acolhe mais pessoal e cada vez é menos marginal. Inclusive, é um movimento social que, com a sua crítica à gestão feita nas últimas décadas, consegue somar pessoas que jamais dariam um peso polo galego à defesa da língua. Parafraseando um fascista, com intenção jocosa e crítica: a diversidade e a garantia de futuro acima de todos, a Ecolinguística acima de tudo.

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Na esfera do reintegracionismo ou, sem mais, do ativismo linguístico, sentes que as gerações mais novas recolhem atitudes, estratégias ou interesses diferentes do que as gerações mais velhas a respeito da língua e a sua difusão social?

Com certeza! Acho que o ponto chave reside em que as novas gerações estamos a difundir, praticar e usufruir da interseccionalidade. Vemos a questão linguística como menos ortográfica e ligamo-la com outros temas de atualidade que também se nos apresentam como conflituosos. Fugimos um bocado da hiperfilologização do reintegracionismo. Não respondemos a critérios estéticos e discursivos homogéneos e, acho, estamos a saber gerir melhor as individualidades que, dentro da coletividade, podem vir a ser muito ricas e diferentes. Até temos referentes para o reintegracionismo que vêm muito de fora dele e da própria Galiza: falo de artistas, filósof@s, pensadores, amizades lusófonas… Tivemos a sorte de encontrar o caminho limpo de silvas e a ausência desses interrogantes e dessas lutas iniciais deu-nos a oportunidade de poder pensar a língua na língua desde pontos diversos e muito mais deslocalizados.


O teu TFG, Trabalho Fim de Graduação, está na linha da construção de identidades sexuais não normativas e a sua manifestação na pragmática da língua. Quais as razões de ter escolhido este foco temático?

Queria realizar um trabalho que supusesse um contributo interessante para os estudos galegos na atualidade dentro do campo das Humanidades. Do ponto de vista da Linguística, que foi a rama que nos últimos anos mais me entusiasmou, achei que recolher dados e refletir sobre os discursos que estão por trás da identidade e da sexualidade podia ser uma das opções mais interessantes. Enquadrei isto na Análise Crítica do Discurso e na Sociolinguística contemporânea para, assim, poder tecer pontes com diferentes questões sociológicas e antropológicas: a sexualidade e o desejo, as redes familiares e comunitárias (os espaços sociogeográficos, as cidades, as aldeias…), a representação e o poder mediático, a reapropriação de termos, etc. Em definitiva, fugi de aproximações filológicas clássicas para tentar estudar os discursos sem ocultar considerações de corte político e usando mecanismos de múltiplas disciplinas.

Embora fosse só um pequeno trabalho, não muito exaustivo, inserido no programa curricular da graduação, serviu-me para abrir o apetite investigador e pensante. E consegui com ele colaborar para encher o vazio deste tipo de trabalhos na Galiza… à diferença de regiões anglófonas, cá quase não existem trabalhos que liguem os estudos sobre a língua, sobre a identidade e sobre o género e a sexualidade. É preciso fazermos cousas novas, originais e úteis!

Levas vários anos integrado na equipa da Através Editora. Num tempo de texto digital que pode fornecer a Através à sociedade?

Sobre o já feito, um grupo de pessoas com que falar, propor, criticar, colaborar, entusiasmar e fazer melhorar. Somos uma editora amadora e sem ajudas institucionais formada por gente que dedica o seu tempo altruistamente a fazer livros; isto é, a conseguir textos, diagramar obras, desenhar capas, socializar os produtos, conseguir mudar a sociedade mediante a ligação entre a escrita e o público, etc.

Acredito em que nestes tempos de texto digital, e em tempos bastante futuros, as pessoas continuarão a ler livros impressos e até a colecioná-los. Há no catálogo da Através algum livro-objeto preciosíssimo como o de Ondjaki, por exemplo. Mas também livros para crianças, antologias (poderoso instrumento nas nossas sociedades) e coleções como Alicerces, de pequenos ensaios sobre temas centrais da atualidade. Uma atualidade que exige refletir e discutir de forma crítica sobre as nossas realidades, constantemente ameaçadas polo pensamento único e os discursos do medo e do ódio.

A diversidade de formas e temáticas conjuga-se com a publicação de obras concretas que jamais teriam cabida noutras editoras da Galiza “oficial”, como o Galiza, um povo sentimental?, de Helena Miguélez-Carballeira. Talvez isso seja um ponto-chave, a combinação de diversidade com originalidade para abrir novos espaços na edição galega, que acaba por ser também internacional, e não só por causa da grafia. Tenho boas amizades portuguesas e catalãs a devorarem livros da Através, feitos por autores e autoras galegas e sobre questões eminentemente relativas ao país.

A Através não é só uma ferramenta ou um espaço de colaboração para a nossa sociedade, senão também um bom espelho, um espelho de esperança.

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Que te motivou a te tornar sócio da AGAL e que esperas do trabalho da associação?

A proximidade, humildade e dedicação honesta das pessoas que fazem parte dela. Espero que o trabalho na associação consiga socializar-se cada vez mais para sermos muitas mais pessoas a vogar juntas. E que acabemos por ser desnecessári@s, inevitavelmente.

Também espero, em termos mais realistas, que consigamos publicar obras geniais na Através, que os projetos audiovisuais frutifiquem em bons documentários e que a sociedade civil galega conheça os nossos produtos e existência, “sem preconceito / é o meu conceito”.

Imagina o ano 2040. Como gostarias que fosse a “fotografia linguística” da Galiza naquela altura?

Imagino – e gosto daquilo que vejo virtualmente – uma Galiza libertada da ditadura do inglês e da McDonaldização cultural a que a maioria de práticas linguísticas se veem condenadas. Imagino, também, uma Galiza em que diversas escolas ensinem o cabo-verdiano, o árabe ou o suaíli, pois existem grupos de pessoas que falam essas línguas entre nós – existirão (ainda mais), e vieram para ficar. Imagino uma TVG que sirva de modelo de referência para a língua e que, através de uma programação dinâmica e atual, sem manipulações nem mediocridades, consiga depurar o galego e mostrá-lo nas suas variedades internacionais. Imagino listas de obras de leitura obrigatória para o Secundário e Bacharelato em que nomes lusófonos (também lusófonos galegos) apareçam com normalidade. E que os alunos e alunas leiam, porque saibam e porque gostem. Imagino-me a mim e as minhas amizades de idade semelhante com trabalho em empresas sem ter de renunciar à nossa língua. Mesmo a essas próprias empresas usando-a sem complexos. Imagino crianças de três, quatro, cinco anos que não perguntem mais aos seus pais (em espanhol) por que é que eu falo “raro”; porque elas e os pais falam tão raro como eu. Imagino (ou gosto de imaginar) uma Galiza sem supremacismo linguístico e cultural em que as pessoas vivam livres de colonizações.

Conhecendo Daniel Amarelo:daniel_amarelo-01

Um sítio web: gosto muito de palavracomum.com , uso bastante o academia.edu porque dá muito jeito para o trabalho em Humanidades e descobri há pouco mas achei ótimo o Every Noise at Once everynoise.com.

Um invento: a Internet, em abstrato e sem considerar a sua perversão posterior; a purpurina; a grafia (como tecnologia)…

Uma música: toda a discografia da GA31 – absolutamente toda, sem exceções. Também “Erva Daninha Alastrar” do António Variações por me representar bastante. E ainda, Mercedes Peón, “Ela Propón”, “Derorán” ou “Olores Perdidos”.

Um livro: impossível escolher!… Da literatura universal, qualquer um do Yukio Mishima. Ou do Genet. Do nosso universo linguístico, talvez O medo de Al Berto, que recompila vários volumes poéticos. E, é claro, alguns bons ensaios; particularmente, as obras de Manuel Castells e, da Judith Butler, Excitable speech: a politics of the performative (ainda sem tradução para o galego-português 😉 ).

Um facto histórico: o nascimento, na década dos anos dez deste século, do Festival Agrocuir da Ulhoa (nos seus inícios Agrogay) com as suas várias edições, que podemos tomar como ponto de partida para a presente Era Agrocuir galega. A história a seguir somos nós a construi-la… (Estou a brincar, ma non troppo.)

Um prato na mesa: lentilhas da minha senhora mãe.

Um desporto: a dança, nas suas variedades.

Um filme: Kill Bill – a sério, quem nunca quis ser a Uma Thurman?!

Uma maravilha: a Astrologia.

Além de galego/a: pós-identitário? Pseudo-aristocrata? Talvez viciado em amizades e livros seja a melhor resposta…

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