Cavando

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“Under my window, a clean rasping sound
when the spade sinks into gravelly ground”

Seamus Heaney

 

Quando vim para Portugal há quase duas décadas tinha na mente a imagem da Galiza como um grande espelho quebrado. Entre as muitas demandas com que comecei a minha particular migração também estava a de juntar os troços do espelho e ver uma imagem não distorcida do meu país, da sua história e da sua língua. Anos passados a imagem foi ganhando dinamismo. O espelho quebrado já não é uma imagem, é a metáfora duma história descontínua, a atrofia coletiva das possibilidades narrativas que ser galego permite mas também a pluralidade vital que apesar de tudo somos. António Gil, meu professor no liceu, costumava convidar-nos a olhar para a Galiza como um laboratório linguístico, um enquadramento que me permitiu ver para além dos quês das disciplinas de línguas e da minha história pessoal e focar-me nos comos das sociedades e as suas línguas. O exercício fez-me ver os conceitos em movimento, um movimento do qual eu também participava e no que sempre tinha uma margem para agir. Nestes anos longe da terra muito tenho pensado na Galiza também como laboratório narrativo, onde observar em ação maneiras bem diferentes de entender a história e de agir sobre ela. Não sei se o limite da história é moral e político ou se é precisamente a moral e a política o que garante a continuidade. Todas as narrativas me parecem necessárias: o catálogo de factos, a seleção para agir do ativismo, as narrativas entre o cósmico e o humano dos poetas. Tenho a pergunta constante de o que é que move a história e nunca soube dar uma resposta única nem desbotar completamente todas as que tenho ouvido.

Acontece ainda que cada vez mais a história que me conto sobre a Galiza começa na pequena história do meu bairro nos inícios dos oitenta, na minha infância, na minha família, nos meus vizinhos. Cresci na Agra do Orçám, um bairro como outros na Crunha, em Ferrol ou em Vigo, construído para juntar gente das aldeias, força de trabalho das indústrias criadas polos “Planes de desarrollo de España” franquistas dos anos 60. Do que pouca gente tem memória é do que aqueles bairros destruíram, as muitas aldeias das freguesias de Visma, Oça, Elvinha e as Vinhas, algumas delas, Eiris, Palavea ou Castro de Elvinha, aldeias dos meus próprios devanceiros. Tenho muitas imagens daquela Agra de 1980, com a Ronda de Outeiro sem asfaltar. Acodem-me três, as das trabalhadoras de uma fábrica de camisas a saírem pontualmente para a parva a meio da manhã, o pôr do sol sobre as agras em que se arava com bois e, claro, o lume aceso numa das torres da refinaria. Os meus pais eram gente dos ofícios, bordadeira minha nai, tipógrafo meu pai, a sobreviverem numa economia que nada valorizava o saber manual do que eles tanto se orgulhavam. A imagem da janela do meu quarto nunca constaria num álbum duma Galiza ideal e eu também eu não a colocaria: viam-se os telhados do prédio de enfrente e ouvia-se o nordês a fungar. Mas a verdade é que foi no marco dessa janela que se moldou a minha visão da Galiza como um drama. Não consigo completar a narrativa que conte a história do meu bairro, apenas vejo o teatro de forças em tensão em que toda a finalidade era pura esperança. Acontece é que dentro de casa a esperança nos movia de facto e ela continua a moldar a minha própria história pessoal na atualidade. Herdei uma língua deturpada e um território feio, algo do que os meus pais tinham plena consciência, e uma atmosfera moral com a ameaça constante da miséria provocada e o medo a ter ideias. Mas também herdei o mandado bem claro de “melhorar a casa”, de estudar não só para esperar outro futuro para mim, mas para dar à minha família a história de um passado verdadeiro que ninguém tinha registado.

A história como memória de homens notáveis que aprendíamos na escola não tinha nem nomes nem cenários galegos, a não ser o breve episódio das luminárias de Santiago, “patrono de España”. No entanto havia brechas na narrativa estatal. Na altura costumávamos ouvir um programa de rádio da RNE, chamado “Galegos na história”, que a modo de teatro radiofónico relatava episódios da história da Galiza. Abria-se com a “Dança das espadas” de Doa. Não esqueci o episódio em que se narrava a guerra das Irmandades. Para além de gravar-me na memória os nomes de Roi Xordo e Afonso de Lançós, gravou-me também a visão duma batalha na cidade de Betanços em que os galegos não cumpriam simplesmente o papel de vítimas. Marcas na memória que me permitiram olhar para um território saturado de signos históricos, cifras de narrativas, as igrejas, ermidas e mosteiros, os castelos e os paços, as antas, as mamoas, os castros, como o castro da minha freguesia nativa, Elvinha.

A minha nai viveu de nena a primeira escavação do castro de Elvinha. Lembrava a excursão que fizera com a mestra e as nenas da sua escola da Pedra Longa e as histórias dos tesouros que agachava o castro. Daquela escola dos 40 do “Cara al sol” e as listas dos reis godos escolheu guardar na memória os relatos da história sagrada. Se ainda fosse viva havia de lhe perguntar porque tinha tanto gosto em repetir os nomes das doze tribos de Israel e em dizer que Jerusalém era o nome de lugar mais bonito do mundo. Contava-me a história de Moisés e a de José a interpretar os sonhos do faraó. Ela também gostava de interpretar sonhos e creio que no fundo se identificava com aquele filho de um povo escravizado que tinha um saber que o faraó não podia alcançar. Das suas escolhas, do seu esforço em criar-nos, à minha irmã e a mim, leio a história como uma linha possível de emancipação. Cria na redenção do ser humano e no seu levantamento duma história marcada pola dualidade carência/abundância e o domínio de uns sobre outros. A sua crença tinha falhas, porque o que tinha dificuldade em acreditar é que algum dia deixasse de haver domínio de uns sobre outras. A memória da minha nai, a sua rebeldia, a sua compaixão polos que sofrem, faz-me pensar que nem tudo se aprende, que o saber dizer não e o sentido da justiça são, em grande medida, cousa de carácter.

A memória faz escolhas que não consigo interpretar. Lembro os jogos de futebol nos campos de terra, creio que à altura do que restava da aldeia de Vionho. Outras escolhas fazem-me todo o sentido: as cantigas que ouvia naqueles tempos, no rádio e nas festas dos bairros, de Fuxan, de Saraibas, de Xocaloma, a voz de Maria Manuela e a presença do seu homem Miguel, a alegria dos concertos de Milhadoiro no auditório do parque de Santa Margarida. A minha nai não perdia nem um recital nem um concerto e levava-me sempre com ela. Ficava entusiasmada por ouvir cantar em galego no espaço público e repetia-me constantemente: não te esqueças do que estás vivendo, guarda bem na tua memória. Que a sua história passava polos músicos e os poetas era dado de experiência para a minha nai. Contava muitas vezes a impressão que teve a primeira vez que ouviu cantar o hino, nos inícios dos 70. A língua que tinha “por língua de escravos” podia ser bela. Lembro também a admiração que os meus pais tinham por Pucho Boedo, bem antes da merecida reabilitação que lhe deu Xurxo Souto. Pucho era um verdadeiro ídolo para a juventude dos bairros dos anos 50. Os meus pais seguiam-no polas pistas de baile de toda a cidade. Lembravam muitas canções cantadas por ele, especialmente “Chessman”, um tango que contava a história de Caryl Chessman, um condenado da prisão de San Quentin na Califórnia que no corredor de morte escreveu vários livros autobiográficos. Ouvi-lhes contar várias vezes que quando Pucho cantava aquele tango todas as parelhas paravam de dançar. “Justicia de los hombres manchada de rencor”, dizia a letra do tango. Que triste país onde para chorar os nossos mortos temos de lembrar os alheios.

Costumávamos fazer uma paragem no túmulo de Pondal no cemitério de Santo Amaro quando levávamos flores ao meu tio, Ramóm Seoane, secretário sindical do comité provincial crunhês do PCE e preso político entre 1947 e 1957. Por um artigo publicado polo historiador Luis Lamela no Anuario Brigantino em 2003, soube que no conselho de guerra em que foi julgado utilizou-se como prova um “hino à guerrilha” que o meu tio tinha consigo no dia em que foi preso. A letra tinha a anotação “con música de la Tapatía”, uma canção que o mexicano Jorge Negrete tinha popularizado por aqueles anos. Do meu tio tenho leves memórias, a imagem dum homem sorridente e avelhentado nos seus sessenta anos. O meu pai costumava jogar com ele ao parchis quando o ia visitar à prisão e na minha família continuamos a jogar ao parchis durante anos, creio que por manter o fio da sua memória. Na prisão também fazia caleidoscópios para os filhos pequenos, meus primos. Sempre ouvi falar de uma gaveta oculta no seu armário com dezenas de cartas a militantes de outros países, mas não pudemos conservá-las, como também a minha avó materna não conservou os livros nem os desenhos nem os cadernos do meu avô republicano. O medo queimou tudo. Para conservar documentos também é preciso poder. E os nossos perderam-se como as aldeias por baixo dos bairros obreiros.

A história na Galiza nunca pode ser só um debate metodológico, ainda que também seja. A dificuldade para levantar o catálogo dos perseguidos da guerra e da pós-guerra são boa mostra de como fazer repertório de factos é uma narrativa tão difícil como todas as outras. O que está em causa é uma fragmentação que cada um de nós sente na sua memória familiar, não só pola quebra e atrofia constante da memória, pola destruição constante de registos e documentos, mas pola nunca cumprida vocação de viver em paz na nossa terra e dos nossos recursos. As nossas famílias, esse povo passivo, amorfo e anacrónico nos discursos de alguns, não são folhas em branco. Têm consciência histórica, consciência do seu tempo, da justiça, do que são, do que sofrem e do que esperam. Deixar registo é já a história das representações, não da vida.

A utopia “desarrollista” dos tecnocratas da Opus Dei desabou e a Crunha vazquista do urbanismo e as grandes obras públicas tomou-lhe o lugar. No bairro foram desaparecendo as últimas casas das antigas aldeias e também as pessoas que tinham memória do movimento operário de antes da guerra, as que pronunciavam com admiração o nome do Foucelhas. Já há anos que não vou por lá. Quem estava já não está e nada me faz sentido sem a gente. O território da minha infância vai-se enterrando num fundo emocional e cada vez se confunde mais com as cidades mergulhadas dos mitos. Daquela encosta verdecente que levava ao mar do Orçám só resta o nome. Agora compreendo alguns poemas de Pondal, essas histórias do mundo enterrado cifrado nos nomes. Os nomes da terra são como o sabor perdido dos morangos de Eiris que a minha bisavó Carme, florista no mercado da Portaria, o que se formava à saida das cigarreiras da Fábrica de Tabacos, cultivava. Como no poema de Seamus Heaney, eu não tenho nem pá nem terra para cultivar como os devanceiros. Com a minha caneta continuarei cavando.

 

Máis de Maria Dovigo