Bolxeviques e menxeviques

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[Nota a quem ler. O autor deste artigo, que porfia em conjugar a presidência da AEG com a adscriçom á AGAL, acolhe-se à benevolência do PGL e dos seus leitores para partilhar o seu particular relato de um desconfortável episódio que terminou em amarga fractura. O autor quer aproveitar a ocasiom para agradecer por antecipado qualquer réplica ou pontualizaçom ao mesmo na conviçom de que todo dissenso é filho da contradiçom e esta do proprio ofício de viver]

24 de outubro de 2016, a denominada Candidatura polo novo Consenso da AGAL presidida por Eduardo Sanches Maragoto resultava ganhadora por 101 votos a favor frente a 7 em contra, 7 em branco e 1 nulo1. A esmagadora maioria abria o passo à norma lusitana como formato ideal do galego escrito pola família reintegracionista, com notável sucesso como podemos comprovar nas colaboraçons no PGL.

A maioria ganhadora recebeu com alvoroço a mudança consagrada por votaçom que vinha pôr fim ao sólido modelo desenvolvido pola AGAL desde o Estudo Crítico de 1983 até a revisom de 1989. Um modelo idóneo, que honrava a lealdade ao idioma secular e literário, corrigia a ameaçante deriva ortográfica e morfológica cara ao castelhano invasor e, finalmente, garantia um relacionamento equilibrado com o português padrom a título de variante histórica legítima do idioma partilhado. Bençom aos redactores dos Estudos Críticos.

A perda de fé nas sólidas virtudes do paradigma concebido nos oitenta é um enigma para mim. A falta de receptividade social e institucional da norma original da AGAL nom parece razom adequada por quanto o remédio proposto, a simples substituiçom polo português padrom, intensifica até o limite o afastamento do formato habitual do galego e contribui a marcar com o estigma do alheio a escrita, indistinguível já do português. O salto de o galego como problema ao português como oportunidade tem ar de demissom e de renúncia a perseverar na árdua tarefa de socializaçom e reabilitaçom do galego que inspirara o impulso original do reintegracionismo. A cerimónia de outubro de 2016 em Sam Domingos de Bonaval consagrou definitivamente o irreflexivo salto do problema sem remédio ao remédio sem problema. A soluçom tem, contodo, a virtude de nom incomodar as instituiçons encarregadas de gerir o galego e a de satisfazer plenamente os exigentes cultores do português. A tarefa de reabilitaçom do galego abandona-se, em definitivo, como extravagante luxo e a Comissom Linguística da AGAL dissolve-se por inutilidade manifesta. O português goza de boa saúde e nom precisa de cuidados.

No entanto, o artigo indefinido umha e derivados passam a uma com perda irreparável de especificidade fonética. Os veneráveis sufixos -om/-am fundirám-se no miraculoso –ão que tanto dá para verãos como para verões, para aldeãos como para aldeões e aldeães. Os textos reintegrados fôrom enchendo-se de tiles, leia-se foram agora, sem diferenciar pretérito perfeito de mais-que-perfeito em idolátrico tributo à nova indumentária gramatical. A prosa rejuvenescida enche-se de gráceis bóias ão flutuando entre as palavras, acompanhadas de hirsutos pelos em substituiçom do honesto e quotidiano polo. “Polo mar abaixo vai…”, segue cantando a gente inadvertida da inovaçom. O complemento indirecto che fica em observaçom clínica pola sua excêntrica mania de pretender diferenciar-se do complemento directo te. Pura libertinagem sintáctica.

A proclamaçom da ortografia português na escrita do galego quotidiano nom deixa de evocar o regime chinês do pinyin — pés vendados ou pés de loto — aplicado às meninas de classe alta que nom precisavam pisar caminhos e ruelas extramuros. Mero artifício de jardim imperial.

A assembleia referendária da troca de paradigma que deu em denominar-se de “confluência normativa” derivou em fractura inevitável por ausência de mediaçom amistosa entre maioritários e minoritários, bolxeviques e menxeviques. Umha fenda de difícil soldadura quando a asa bolxevique se arroga a virtude teleológica de possuir o futuro certo. A mesa moderadora da assembleia de Bonaval tinha pressa em pôr fim a embaraçosa liturgia da cissom latente. Votamos, e a esmagadora maioria consagrou a “confluência normativa” e com ela a inevitável fractura de quem tolerava o convívio crítico mas nom a nova ortodoxia.

Tentei mediar naquela assembleia como talvez lembrem os assistentes, avisando das obscuras perspectivas de abrir um cenário de fractura mediante umha breve intervençom alusiva a um debate similar celebrado noventa e nove anos antes da nossa assembleia de Bonaval; no dia 25 de outubro de 1917 segundo o calendário russo. Foi essa assembleia a que consagrou a fractura no Partido Operário Social-Democrata de Rússia (POSDR) entre bolxeviques (maioritários) e menxeviques (minoritários). Naquela ocasiom foi cunhada umha das expressons mais fátuas de toda a história política. Os menxeviques perdedores fôrom condenados “á esterqueira da história” em merecido castigo à sua ignoráncia dos desígnios da História, patrimônio exclusivo da fracçom maioritária.

A assembléia de 1917 tivo lugar nas imediaçons de Sam Petersburgo como daquela e hoje mesmo se denomina a cidade, depois de o fluxo da história concluir o seu ciclo condenando a maioritários e minoritários a sepultura comum. Naquela ocasiom, o enfrentamento foi protagonizado por Trotsky como porta-voz dos bolxeviques e por Martov pola corrente minoritária, condenada por ignorar o oráculo da história e por propor a via pluralista á revoluçom.

Foi naquela ocasiom quando Trotski tomou a palavra para rechaçar com gélida arrogáncia a via negociada propugnada por Martov. A nossa insurrecçom triunfou e agora pretendedes que renunciemos á nossa victória, ante quem? Ante esse patético punhado que acaba de abandonar? Nom tendes apoio, fracassastes, ide ao lugar que vos corresponde: a esterqueira da história. Martov, fundador da Iskra junto com Lenin, ainda acertou a sussurrar: Un día compreenderedes o crime que estades a cometer. Testemunha da cruel diatribe o jornalista americano John Reed. O episódio pode ser rememorado da mao do historiador Juan Pablo Fusi2 e completado com a evocaçom do cruel destino reservado a Trotsky, o infortunado profeta armado.

Finalizada a assembleia de Bonaval houve ainda fotografia conjunta mas nom já jantar confraternal. A minoria menxevique salvou a nado o cabo das tormentas e acabou arribando á ilha da AEG desconhecida até o momento no mapa reintegracionista.

A parábola da ruptura do POSDR serviu-me em Bonaval para avisar do iminente perigo de fractura mas passou desapercebida em meio das pressas por cerrar o penoso tramite de consagraçom do novo paradigma para o galego escrito.

A ominosa sentença da esterqueira da história resume numha só frase a atitude avassaladora de quem se arroga o papel de intérprete do futuro. Porém, naquela ocasiom era Martov quem tinha razom e a história nom tardou muito em dar-lha. A sua honesta derrota avisa-nos que toda tese tem a sua sombra que lhe serve de contraponto e que é neste lusco-fusco das posiçons em confronto onde se oculta a verdade. Os derrotados da história fôrom finalmente absolvidos em inútil vitória póstuma sobre os antigos ganhadores de umha verdade fugaz e mutilada.

Notas: