Bilhete Postal

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bilhete postal CoimbraCoimbra, no Mondego. Escada de São Tiago, fora justo do perímetro da cidade alta. Mesas na rua. Hora dos petiscos, do café, do almoço, nunca sei. Momento de simples descansar dos centos de turistas, que coma nós, na procura da sombra que foge, recalam de quando em quanto para tomar alento e pousar os pés, castigados pelas belas encostas e as pedras irregulares dos becos, largos e ruas.

Converso, observo, evado-me. O meu filho anda submerso numa História do futebol, a minha filha rascunha entusiasta nas perguntas e palavras cruzadas num magazine infantil. A minha mulher lê num guia de vinhos de Portugal lápis na mão. Com perigo das nódoas da cerveja que se evapora, eu desenho o largo, e risco em postal e pena umas notas para o Carlos Calvo.

A carão, perto de mais, falam francês baixinho e castelhano “a viva voz”. Os espanhóis são um grupo, mulheres e homens de trinta e algo ou quarenta e pouco. Comentam a imprensa que uma deles —El Mundo por bandeira— agita. Na outra: três meninas modernas: uma um pouco mais velha que os meus, outra adolescente e uma no intermédio; um casal na casa dos cinquenta fardados à turista e armados de câmara; e uma senhora idosa de aspecto bem mais popular.

A mais miúda fala alguma cousa para o pai. Atenção. A irmã do meio diz para ela falar com a avoa e com o pai, cá, em Português. A pequena diz: – não! A mais velha começa a falar num português muito marcado de estrangeirice. O pai resposta num português desabituado, como quem recupera de um fundo de armário. A velha responde com clara e pausada fala. A mulher fala um português atrapalhado.

Emigrantes em férias? Quantos não terei visto nestes dias. Na rua, enchendo as estradas com os seus carros suíços, alemães e franceses. Emigrantes definitivos. Segundas, ou ainda terceiras gerações que visitam famílias, peregrinam a lugares da memória, ou vêm acompanhados de amigos e parentes.

Coimbra, abandonada, decadente, escancarada, alheia de si no estio, fascina-me. A universidade-estado no alto, as ruas, livrarias, passeios, largos, becos, cafés, lojas e sebos cativam a minha imaginação mais que os monumentos. Será o escolar que nunca deixei de ser, ao que chamam estas cidades académicas; mas algo me comove cá que nunca sentira no Porto, Lisboa; nem em Compostela ou Salamanca.

Pode, ironizo também, que o saudoso Mondego referencie-me, como as músicas do José Afonso, que daqui emigraram para a Crunha, na Galiza, reconstruir os teitos queimados do Teatro Principal, aqueles Souzas. Gerações de artesãos de retábulos, pintores de murais ornados e policromadores barrocos de altares, desenhadores de artesonados burgueses e decorados teatrais, de qualquer forma que a imaginação, as ferramentas e os moldes permitam fazer com gesso ou madeiras.

Quem sabe se nalguma das cousas contempladas estes dias não habita a memória que por vezes se desperta nas mãos. Séculos de ornatos que fazem palpitar o meu coração na Biblioteca. Entrar e sair, desta vez, apenas.

A minha filha traz-me de volta. Não percebe uma palavra. Eu também não. Dirige-se a mim em castelhano, com algumas palavras galegas. Mais galego, quando quer mais atenção ou procura uma implicação. O meu filho diz para nós a sua teoria, como adoito, imprimindo o sotaque e léxico da Crunha ao castelhano. A minha mulher intercala expressões e palavras em português e galego no seu castelhano, e bate certo na palavra.

Em que falo eu para eles? Em que falo para mim? Não sou consciente. Percebo um galego cheio de castelhanismos, uma tonalidade e prosódia menos marcada ou um castelhano agalegado com palavras portuguesas e literárias.

Patois, dialeto, fala familiar, língua social, língua nacional, língua de cultura. São usos flutuantes a respeito dos interlocutores e contextos? Percebo, nesse momento que, em realidade, não tenho sentimento de Língua. Não tenho uma língua, nem duas, apenas um abano de estratégias comunicativas, oscilando entre um castelhano que não considero meu e um português que também não me resulta alheio. Estaria bem ficar por cá um tempinho.

Penso numa rapidez abaladora que a emigração das classes trabalhadoras, das especializadas a outro país implica a adaptação: a substituição da língua, dos códigos, dos hábitos, dos costumes. Perdura a memória familiar, fatos, ditos, léxico, comidas, hábitos, histórias e contos, jeitos de enxergar o mundo. Mas os emigrantes definitivos perdem a língua materna como perdem a Terra referente. Isso os que tiveram alguma e não são já filhos, netos, de gentes já sem Terra.

Penso nos meus antergos como personagens dos relatos de Bernard Malamud e que a emigração a outros países talvez não é mais marcante que a emigração aos espaços urbanos, concorrente com o desenvolvimento renascentista, exponencial nos séculos XIX e XX, paralelo à invenção dos estados primeiro e das nações depois.

Talvez por isto as classes médias urbanas, em toda a parte tenham “Pátrias” em vez de “Terras”, e tenham “Línguas” coincidentes com as das escolas e os jornais, em vez de ”Falas” caseiras e sejam, por isto, tão permeáveis à ideia do Estado, a essas leis e valores e às novidades do progresso.

Talvez por isso os artesões, os judeus, os intelectuais, os migrantes, errantes, viageiros, e depois as populações urbanas tenham resolvido, uma vez quebrado o vencelho com a Terra, com imensa facilidade, que não têm em realidade essa língua, que há que se adaptar no dia a dia ainda que se possa deixar refúgios às saudades, para que deste jeito possam ser gradualmente retificadas no conserto das vindouras gerações.

Talvez por isso o vencelho com as casas familiares, o rural no fim de semana ou férias tenha sido tão fundamental não apenas para a estrutura económica, quanto para a conservação, para a permanência latente do galego. Talvez por isso os patriotas recuperam a língua e fazem dela bandeira e vínculo social e familiar. Para recuperarem a Terra. Para, ao mesmo tempo que projetam as nações, dar forma física e mental aos mapas dela.

Penso no medievo e os seus gêneros divididos em usos de língua. Ou que nos humanistas amaram o latim dissociando de vez língua, fala e usos. Eu não herdei nenhuma Terra, nenhuma língua. Talvez por isso sempre vi com mais claridade as línguas de cultura que as maternas. Se os meus emigraram a América, a França, a Suíça, a Alemanha, aos USA, ou a outra parte que não fosse à Galiza, as minhas estratégias seriam outras. O sentimento, na luz de Coimbra, talvez não.

Alguém pede a conta na mesa da direita. O moço responde, vozeirante para toda Coimbra, num estranho castelhano. Sorrio para os meus. Volvo ao postal. O Carlos há-se rir.

 

Máis de Ernesto V. Souza